terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Introdução

Capítulo I – O Direito Internacional Privado enquanto ramo do direito

● Noção de Direito Internacional Privado

A) As situações transnacionais e o problema da sua regulação jurídica

Na organização actual da sociedade internacional encontramos uma pluralidade de estados soberanos. Simplificando, podemos dizer que a cada um destes Estados corresponde um sistema jurídico, pelo que há uma pluralidade de sistemas jurídicos estaduais. À pluralidade de sistemas jurídicos corresponde uma diversidade de regulação jurídica das mesmas situações da vida.
Mas é patente que a sociabilidade humana não para nas fronteiras do Estado e que por razões de índole económica, cultural e política se estabelecem relações que apresentam contactos com duas ou mais sociedades estaduais.
E o que hoje se verifica é uma crescente internacionalização das relações sociais.

B) Situações transnacionais e situações privadas. Imunidades de jurisdição e pretensões de Estados estrangeiros

Tradicionalmente entende-se que o Direito Internacional Privado regula as situações privadas.
Trata-se então se situações que dizem respeito ao Direito Civil das Pessoas, ao Direito das Obrigações, ao Direito das Coisas, ao Direito da Família, ao Direito das Sucessões, ou a Direitos privados especiais, como é o caso do Direito Comercial.
Também são situações privadas aquelas em que, estando implicado um Estado ou um ente público autónomo, este não age na qualidade de sujeito público, mas como se de um particular se tratasse, pois estas situações são regidas pelo Direito privado.
Mas, como em seguida se verá, o objecto do DIP também abrange certas situações que, no todo ou em parte, não são reguladas pelo Direito privada. Daí que se pareça preferível falar apenas em situações transnacionais.
Entendo por situações transnacionais todas aquelas em que se coloque um problema de determinação do Direito aplicável que deva ser resolvido pelo DIP.
A maior parte das situações públicas não coloca um problema de determinação do direito aplicável, por estarem directamente submetidas ao Direito do sujeito público. È o que se verifica com duas categorias de situações:
I – as que não são susceptíveis de regulação na esfera interna, por dizerem respeito a certas actividades públicas estrangeiras por forma a ficarem inseridas exclusivamente na esfera de regulação de um Estado estrangeiro por força do Direito Internacional;
II – as que são primariamente conformadas por Direito público português.
Assim, por exemplo, não é regulado pelo DIP português um contrato de empreitada de obras públicas celebrado entre uma sociedade sedeada no estrangeiro e o Estado português.
Na determinação dos limites impostos pelo DIPúblico à esfera de regulação da ordem local importa estabelecer uma correspondência com a imunidade de jurisdição dos Estados estrangeiros, das organizações internacionais e dos agentes diplomáticos e consulares e com a admissibilidade de pretensões de Estados estrangeiros.
Diz-se que uma pessoa goza de imunidade de jurisdição quando, por força do DIPúblico, não pode ser proposta uma acção contra ela nos tribunais de outro Estado.
Logo, quando um sujeito público estrangeiro ou uma organização internacional goza de imunidade de jurisdição, a situação fica subtraída à esfera institucional da ordem jurídica portuguesa.
No que toca à imunidade de jurisdição dos Estados a tendência dominante vai no sentido de um conceito restritivo de imunidade, que a limita aos actos soberanos, ou seja, os actos praticados iure imperii, por contraposição aos actos de natureza comercial ou privada, praticados iure gestionis, que dela são excluídos.
A situação é ainda menos clara no que toca à imunidade de jurisdição das organizações internacionais (e dos seus agentes). Segundo o entendimento que se afigura preferível, esta imunidade deve seguir um regime semelhante ao da imunidade de jurisdição dos Estados, e, por conseguinte, também para ela deverá valer um conceito restritivo de imunidade. Isto, claro está, se outra coisa não resultar de convenções internacionais que vinculem internacionalmente o Estado em causa.
As imunidades de jurisdição dos agentes diplomáticos e consulares são reguladas pelas Convenções de Viena sobre Relações Diplomáticas (1961) e sobre as Relações Consulares (1963).
Os agentes diplomáticos gozam de imunidade de jurisdição civil, com excepção das acções relativas a imóveis privados situados no território do Estado acreditador, salvo se o agente diplomático os possuir em nome do Estado acreditador para fins da missão; das acções relativas a sucessão por morte, na qual o agente diplomático figure, a título privado, como executor testamentário, administrador, herdeiro ou legatário; e, das acções relacionadas com o exercício de uma actividade profissional ou comercial fora das suas funções oficiais.
Os funcionários e empregados consulares só gozam de imunidade no Estado receptor com respeito aos actos praticados no exercício de funções consulares.
Estas imunidades diplomáticas e consulares são renunciáveis.
Importa igualmente atender à admissibilidade de pretensões formuladas por Estados estrangeiros com fundamento no seu Direito público.
Em minha opinião, a ordem jurídica de um Estado é inteiramente livre de decidir se tutela ou não juridicamente a pretensão de um Estado estrangeiro fundada no seu Direito público. È de esperar que um Estado, na falta de motivos especiais, designadamente de solidariedade ou cooperação judiciária entre Estados, não admita nos eus tribunais pretensões de Estados estrangeiros que digam respeito a situações ou aspectos de situações que só podem ser objecto de regulação na ordem jurídica destes Estados.
A transposição dos critérios definidores das imunidade de jurisdição e da admissibilidade de pretensões de Estados estrangeiros para a delimitação do objecto do DIP permite concluir que o DIP português não pode regular as situações resultantes da actuação iure imperii seja de Estados ou entes públicos autónomos estrangeiros seja de organizações internacionais. O DIP português também não pode regular grande parte das relações estabelecidas pelos agentes diplomáticos acreditados em Portugal, mesmo que resultem de actos de carácter privado, nem as relações estabelecidas pelos funcionários consulares no exercício das funções em Portugal.
Mas o DIPúblico já não impede que o DIP de um Estado regule as relações ligadas à actuação iure gestionis seja de Estados ou entes públicos autónomos estrangeiros seja de organizações internacionais.
Até ao momento, além de não ter sido adoptado qualquer regime interno sobre a imunidade jurisdição, o legislador não criou tais soluções específicas, nem a jurisprudência sentiu a necessidade de suprir a eventual omissão do legislador. Por isso, parece de partir do princípio que o DIP português é aplicável a todas as relações que, embora implicando Estados ou entes públicos autónomos estrangeiros, organizações internacionais ou agentes diplomáticos ou consulares de Estados estrangeiros, sejam susceptíveis de regulação na esfera interna.
O DIP português é ainda aplicável a relações entre diferentes Estados ou organizações internacionais que sejam por eles subtraídas á aplicação directa do DIPúblico. O mesmo se diga das relações entre entes públicos autónomos de Estados diferentes.

C) Carácter transnacional das situações reguladas.

È corrente afirmar-se que o DIP regula situações de carácter internacional. Por internacional quer-se significar a existência de contactos relevantes com mais de um Estado soberano, com mais de uma sociedade politicamente organizada em Estado soberano.
O recurso ao adjectivo “transnacional” permite evitar esta ambiguidade da palavra “internacional”. Trata-se, com efeito, de situações que transcendem a esfera social de um Estado soberano, entrando em contacto com outras sociedades estaduais.
São múltiplos os factores que podem dar à situação este carácter transnacional: a nacionalidade dos sujeitos, o seu domicílio ou residência habitual, o lugar onde se produzem certos factos, o lugar onde está situada uma coisa.
As situações transnacionais carecidas de regulação jurídica são em regra apreciadas segundo o DIP de uma ordem jurídica estadual. Daí que a internacionalidade da situação seja vista, na perspectiva desta ordem jurídica, como uma estraneidade. Os elementos de estraneidade são os laços que ligam a situação a outros Estados.
Assim, por exemplo, perante o DIP português um casamento celebrado por um português com um espanhola, em Itália, onde ambos residem, apresenta como elementos de estraneidade a nacionalidade espanhola de um dos cônjuges e a localização em Itália do lugar da residência e do lugar da celebração do casamento.

D) Processo conflitual

O DIP regula as situações transnacionais através de um processo conflitual. Tradicionalmente entende-se que o núcleo essencial do DIP é constituído por normas de conflito. As normas de conflito de DIP são proposições que perante uma situação em contacto com uma pluralidade de sociedades estaduais determinam o direito aplicável.
Por exemplo, o art. 50º CC determina que a forma do casamento é regulada pela lei do Estado em que o acto é celebrado. Perante em casamento internacional, designadamente quando os nubentes não se encontram ligados a um só Estado pela nacionalidade ou pela residência habitual, esta norma de conflitos submete a forma do casamento ao Direito do Estado em que é celebrado.
No DIP não estão directamente em causa conflitos de soberanias, isto é, conflitos de competências legislativas entre Estados. Trata-se de determinar o Direito aplicável a uma situação transnacional e não de regular competências legislativas dos Estados.
Também não se deve confundir “conflitos de leis” com as divergências entre os sistemas materiais em presença na regulação de uma situação da vida. Por certo que o DIP pressupõe a vigência de uma pluralidade de sistemas jurídicos que apresentam um certo grau de diversidade entre si. Mas esta divergência entre os sistemas em presença não constitui um “conflito de leis” na ordem jurídica local, visto que estes sistemas não são simultaneamente aplicáveis na ordem jurídica local.
Enfim, tão-pouco se deve fazer confusão com os chamados conflitos de sistemas de DIP. Diz-se que há um conflito de sistemas em DIP quando os Direitos de Conflitos das ordens jurídicas em presença divergem entre si sobre qual delas deve ser aplicada ao caso.
Quando falamos de conflitos de leis em DIP queremos tão-somente identificar o problema de determinação do Direito aplicável gerado por uma situação da vida que está em contacto com a esfera social de mais de um Estado.
A função do Direito de Conflitos é, em primeira linha, a de regular situações transnacionais.
O Direito dos Conflitos opera esta regulação por meio de um processo de regulação indirecta: regula as situações transnacionais mediante a remissão para o Direito aplicável.

● Caracterização das normas de conflitos de leis no espaço

A) Aspectos gerais

São tradicionalmente atribuídas às normas de conflitos de leis no espaço três características fundamentais:
- são normas de regulação indirecta;
- são normas de conexão;
- são normas fundamentalmente formais.

B) Norma de regulação indirecta

As normas de regulação indirecta ou remissivas contrapõem-se às normas de regulação directa ou materiais.
As normas materiais desencadeiam efeitos jurídicos que modelam as situações jurídicas das pessoas.
Por exemplo, os arts. 122º e 123º CC estabelecem a incapacidade de exercício de direitos; do art. 483º CC infere-se que as pessoas estão obrigadas a actuar com o cuidado exigível para não violarem direitos e interesses juridicamente protegidos doutrem e que, se violarem dolosa ou negligentemente estes direitos, estão obrigados a indemnizar.
As normas materiais determinam o regime aplicável á situação descrita na previsão. A consequência jurídica destas normas modela situações jurídicas, designadamente por via da atribuição de direitos e da imposição de deveres, da definição do estado e da capacidade das pessoas e do estabelecimento de requisitos de validade ou de eficácia de actos jurídicos.
As normas de regulação indirecta mandam aplicar à situação descrita na sua previsão outras normas ou complexos normativos. No caso das normas de conflitos de DIP a consequência jurídica consiste no chamamento do Direito aplicável. Por conseguinte, as normas de conflitos, enquanto normas de regulação indirecta, não modelam, de per si, as situações jurídicas das pessoas.
As normas de conflitos dos arts. 25º e 31º/1 ou 32º em matéria de capacidade, do art. 45º quanto à responsabilidade extracontratual, do art. 36º relativamente à forma do negócio jurídico do art. 52º sobre as relações entre os cônjuges ou do art. 62º sobre a sucessão por morte não estabelecem directamente incapacidades, deveres de conduta, requisitos de forma ou direitos de sucessão. A função destas normas é antes a de designar a ordem jurídica que fornecerá a disciplina material destas situações, que as regulará directamente.
Sigo, por isso o entendimento de Isabel Magalhães Collaço, segundo o qual a norma de conflitos é uma norma de conduta, embora de regulação indirecta: cumpre a sua função reguladora através da remissão para o Direitos que vai regular directamente a situação.
Creio que as remissões legais não constituem verdadeiras normas, mas proposições jurídicas incompletas, que vêm geralmente a traduzir-se numa extensão da previsão das normas para que remetem. Ao passo que as normas de conflitos de DIP são verdadeiras normas de regulação indirecta, porque exprimem valorações autónomas, prosseguindo finalidades deste ramo de Direito.
Entendo também que as normas que remetem para os usos, bem como as normas de recepção do Direito Internacional são regras sobre fontes, que são regras sobre regras, e não regras remissivas, que são regras de conduta.

C) Norma de conexão

As normas de conflitos que integram o sistema de Direito de Conflitos são, por forma geral, normas de conexão, porque conectam uma situação da vida, ou um seu aspecto, com o Direito aplicável, mediante um elemento ou factor de conexão.
Esta conexão estabelece-se mediante a selecção de determinados laços que o DIP considera juridicamente relevantes e decisivos para a determinação do Direito aplicável: os elementos de conexão. Por exemplo, a nacionalidade, a residência habitual e o lugar da situação de uma coisa.
Assim, da conjugação do art. 25º CC com o art. 31º/1 CC resulta que a capacidade é regulada pela lei da nacionalidade. A nacionalidade é o elemento de conexão que conecta essa questão com um determinado Direito.
Além das tradicionais normas de conflito de leis no espaço, que são normas bilaterais, porque tanto chamam o Direito do foro como o Direito estrangeiro, há normas de conflitos unilaterais, que só desencadeiam a aplicação do Direito do foro. Mas convém adiantar que as normas de conflitos unilaterais e, entre elas, as normas de conflitos ad hoc que se reportam a normas ou conjuntos de normas materiais individualizadas, também são normalmente normas de conexão.
A selecção dos elementos de conexão em função das matérias implica uma valoração. A norma de conflitos tem um conteúdo valorativo que fundamenta a conexão.
Cabe questionar se devem ser consideradas normas de conflitos todas as normas sobre a determinação do Direito aplicável ou só as que são normas de conexão. Por minha parte entendo que o DIP, enquanto ramo do Direito, continua a ser caracterizado essencialmente pelo processo de regulação indirecta, e este processo tanto pode ser realizado por normas de conexão como por outras sobre a determinação do Direito aplicável.

D) Norma formal

As normas de conflitos que integram o sistema de Direito de Conflitos são as normas fundamentalmente formais.
São normas formais porque na designação do Direito aplicável não atendem ao resultado material a que conduz a aplicação de cada uma das leis em presença.
Por exemplo, o art. 49º CC submete a capacidade para contrair casamento, em relação a cada nubente, à respectiva lei pessoal. A lei pessoal é, em princípio, a lei da nacionalidade (art. 31º/1 CC). Por conseguinte, esta norma de conflitos manda aplicar a lei da nacionalidade à capacidade para contrair casamento, independentemente do conteúdo desta lei.
O carácter formal tem que ver com o conteúdo valorativo das normas de conflitos. São diferentes as valorações subjacentes às normas materiais e às normas de conflitos.
As normas de conflitos que não sejam normas de conexão podem ou não ser fundamentalmente formais. O formalismo do Direito de conflitos tem limitações.
Em primeiro lugar, o Direito de Conflitos nunca é absolutamente formal, porque não se desinteressa completamente do resultado a que conduz a aplicação do Direito competente. O Direito de Conflitos reserva um certo controlo sobre o resultado material através da cláusula de ordem pública internacional, consagrada desde logo no art. 22º CC.
Em segundo lugar, há normas de conflitos materialmente orientados, que atendem ao resultado material.
Algumas normas do sistema de Direitos de Conflitos favorecem um certo resultado material. Assim, por exemplo, as normas dos arts. 36º e 65º CC e do art. 9º da Convenção de Roma sobre a Lei Aplicável às Obrigações Contratuais, relativas á forma de negócios jurídicos, favorecem a validade formal.
Em terceiro lugar, mesmo quando actua simplesmente através de normas de conflitos tradicionais o Direito de Conflitos realiza até certo ponto uma função modeladora na disciplina das situações transnacionais. Esta função modeladora apresenta duas vertentes.
Por um lado, a interpretação da norma de conflitos comanda a resolução de muitos problemas suscitados pela concretização dos elementos de conexão e pela conjugação das ordens jurídicas chamadas a reger diferentes aspectos da mesma situação.
Por outro lado, o Conflito de Direitos também não se desinteressa do ajustamento da solução material às circunstâncias do caso, atendendo à especificidade do carácter internacional da situação, dentro dos limites em que tal for permitido ao órgão de aplicação.

E) Outros Direitos de Conflitos e as suas relações com o Direito Internacional Privado

Já sabemos que o DIP não é o único Direito de Conflitos. Existem outros tais como:
I – Direitos de Conflitos Interlocal e Interpesssoal
II – Direito Intertemporal
III – Direito de Conflitos Público.

Capítulo II – Planos, Processos e Técnicas de Regulação das Situações transnacionais

● Preliminares

Quanto aos processos de regulação das situações transnacionais é tradicional contrapor o processo conflitual, ou de regulação indirecta, a determinados processos materiais ou directo, designadamente:
- a aplicação directa do Direito material comum;
- a criação de Direito material especial de fonte interna;
- a unificação internacional do Direito material.

A distinção entre regulação indirecta e directa deve fazer-se em função da necessidade ou desnecessidade de uma valoração conflitual.
Só em três casos se verifica uma regulação directa de situações transnacionais no seio da ordem jurídica estatal.
Primeiro, quando o Direito material comum do foro for aplicado a quaisquer situações independentemente de comportarem elementos de estraneidade.
Segundo, quando soluções ad hoc ou direito material especial de fonte interna forem aplicados a situações que comportam determinados elementos de estraneidade, independentemente dos laços que apresentam com o Estado local.
Terceiro, quando Direito material especial de fonte supraestadual for aplicado a situações transnacionais, independentemente de uma conexão entre as situações e um dos Estados em que vigora esse Direito.
A regulação das situações transnacionais na ordem jurídica estadual é, em regra, indirecta. A grande maioria dos ditos “métodos de regulação material” são, técnicas de regulação indirecta.
Por conseguinte, começarei por distinguir a regulação pelo Direito estadual, a regulação pelo DIPúblico e pelo Direito Internacional Comunitário e a regulação por Direito autónomo do comércio internacional, para examinar a forma por que este se processa a regulação das situações transnacionais em casa um destes planos.

● Regulação pelo Direito Estadual

A) Aspectos gerais. Regulação pelo sistema de Direito de Conflitos

Entende-se por regulação pelo Direito estadual aquela que opera na esfera de uma ordem jurídica estadual. Isto significa que a situação é em primeira linha regulada pelo Direito vigente na ordem jurídica estadual em causa e que os litígios que lhe digam respeito são apreciados pelos respectivos tribunais estaduais.
Na medida em que na ordem jurídica estadual vigorem, a par das normas de fonte interna, normas de fontes supraestaduais, esta regulação pode ser feita tanto por normas internas, como por normas internacionais ou comunitárias. È o que se verifica com a ordem jurídica portuguesa.
Em ordens jurídicas como a portuguesa o sistema de Direito de Conflitos é formado essencialmente por um conjunto de normas de conflitos bilaterais e de normas sobre a interpretação e aplicação destas normas bilaterais. No direito português estas normas são, em geral, de fonte legal.
Por conveniência de exposição, após examinar a regulação mediante a aplicação directa do Direito material comum, vou considerar o Direito material especial de fonte interna em geral, distinguindo em seguida os casos em que há uma regulação directa daqueles em que a regulação é indirecta. Em terceiro lugar, farei uma apreciação de conjunto da unificação internacional do Direito material, também aí distinguindo entre regulação directa e indirecta. Finalizarei com conclusões sobre os processos e técnicas de regulação utilizados no plano de ordem jurídica estadual.

B) Aplicação directa do Direito material comum

Considere-se como primeira alternativa ao sistema de Direito de Conflitos, a regulação das situações transnacionais mediante a aplicação directa do Direito material comum.
Neste caso as situações internacionais seriam reguladas como se de situações puramente internas se tratasse.
Por exemplo, em Portugal, a validade do casamento celebrado na Holanda por um holandês e uma belga, residentes na Holanda à data do casamento, mas que posteriormente estabeleceram residência em Portugal, seria apreciada segundo o Direito material português.
Esta técnica tem uma vantagem óbvia: é a via mais fácil para os órgãos de aplicação do Direito que, além de não terem de aplicar o Direito de Conflitos, estão mais familiarizados com o Direito material interno do que com Direito estrangeiro.
Mas as desvantagens desta técnica não são menos evidentes.
O Direito aplicável não seria previsível, porque variaria consoante o Estado em que a questão se colocasse. No exemplo dado, se a questão se discutisse em tribunais portugueses seria aplicável o Direito português, caso se discutisse na Holanda seria aplicável o Direito holandês, na Bélgica o direito belga e por ai adiante.
Isto conduziria à incerteza sobre as situações jurídicas existentes.

C) Criação de um Direito material especial de fonte interna

Em lugar de aplicar o seu Direito material comum, os Estados podem criar um Direito material especial aplicável exclusivamente às relações transnacionais.
O Direito material especial encontra precedente no ius gentium romano.
O ius gentium é um corpo de normas materiais só aplicáveis às relações internacionais, e que se pretendia fundado na naturalis ratio (razão natural).
O Direito material especial de fonte interna só constituirá uma técnica de regulação directa se for aplicável a quaisquer situações que comportem elementos de estraneidade independentemente de uma ligação com o Estado do foro.
Ora, neste caso o Direito material especial de fonte interna apresenta todas as desvantagens que foram assinaladas a respeito da aplicação directa do Direito material comum.
Se esta técnica de regulação directa é de rejeitar como alternativa global ao processo conflitual, já nada obsta a que relativamente a certas questões bem delimitadas se possa justificar a formulação de normas de Direito material especial directamente aplicável.
Poderemos designá-los por normas de “DIP material”. Não se ignora que esta expressão é frequentemente empregue nu sentido amplo, para abranger todo o Direito material especial.
Constitui exemplo a norma contida no nº 2 do art. 54º CC. O recurso a normas de DIP material justifica-se nos casos excepcionais em que o Direito de Conflitos não permite, por si alcançar uma solução adequada. Isto pode dever-se seja a problemas gerados pela técnica conflitual seja à especificidade da situação transnacional em causa.
Em regra, como se assinalou, o Direito material especial vê a sua aplicação depender de uma ligação com o Estado do foro. Trata-se, então, de uma das técnicas de regulação indirecta, que não prescinde de normas de conexão.
No quadro de regulação indirecta, a aplicabilidade do Direito material especial pode depender do sistema de normas de conflitos ou de normas de conexão especiais.
No primeiro caso diz-se que o Direito material é dependente. O Direito material especial de aplicação dependente não constitui qualquer alternativa à regulação pelo sistema de Direito de Conflitos.
Diz-se independente o Direito material especial cuja aplicação depende de normas de conexão especiais. Em regra o Direito material especial é de aplicação independente.
Este Direito material especial delimita o seu âmbito de aplicação no espaço, através de dois pressupostos: uma conexão com um Estado estrangeiro (ou elemento de estraneidade) e uma conexão com o Estado do foro. Esta conexão com o Estado do foro é definida por normas de conexão ad hoc, isto é normas de conflitos unilaterais que se reportam a normas ou conjuntos de normas materiais individualizadas.
Podemos agrupar estas normas de Direito material especial em dois grupos. O primeiro é o das normas de aplicação dependente do sistema de Direito dos Conflitos. È o que se verifica, por exemplo, com o art. 2223º CC.
Outro exemplo é o fornecido pelos nº 2 e seguintes do art. 3º CSC, com respeito à transferência internacional da sede da administração da sociedade. As normas de Direito material especial aí contidas são aplicáveis no quadro da competência atribuída ao Direito português pela norma de conflitos do nº1 do mesmo artigo.
O segundo grupo é constituído pelas normas cuja aplicação resulta de normas de conexão especiais.
Podemos inserir aqui, por exemplo, as normas que estabelecem um tratamento específico para os estrangeiros.
O Direito material especial de fonte interna é muito utilizado no quadro da intervenção económica do Estado sobre relações “privadas” internacionais.

D) Unificação internacional do Direito material aplicável

Temos agora em vista a unificação internacional do Direito material aplicável, principalmente por via de convenções internacionais.
Para averiguar do significado desta unificação internacional para a regulação das situações transnacionais é fundamental distinguir entre diferentes métodos de unificação internacional.
Seguindo a lição do Direito Comparado vou distinguir entre três métodos de unificação internacional: uniformização; unificação srticto sensu e harmonização.
A uniformização consiste na criação, por uma fonte supraestadual, de Direito uniforme, isto é Direito aplicável tanto nas relações internas como nas internacionais. Dentro do seu âmbito material de aplicação o Direito uniforme substitui o Direito comum de fonte interna. Nas matérias reguladas pelo Direito uniforme cessa ou suspende-se a vigência do Direito comum interno.
A unificação consiste na criação, por uma fonte supraestadual, de Direito material unificado, isto é, Direito material especial de fonte supraestadual. Ao lado do Direito comum de fonte interna passa a vigorar na ordem interna um Direito especial aplicável às situações internacionais.
As principais áreas da unificação são:
- Compra e venda internacional;
- Transportes internacionais;
- Direitos sobre embarcações e aeronaves;
- Direito marítimo;
- Propriedade intelectual;
- Testamento.
A harmonização traduz-se no estabelecimento de regras ou princípios fundamentais comuns. È um método com objectivos mais modestos que a uniformização ou a unificação. Não visa estabelecer um regime idêntico nos diversos sistemas nacionais, mas tão-somente aproximar estes sistemas.
A harmonização tem designadamente como instrumentos:
- As leis-modelo;
- As directivas comunitárias

Quanto ao método referido em último lugar – a harmonização – nada vem alterar o normal funcionamento do sistema de Direitos de Conflitos, uma vez que não elimina as diferenças entre os ordenamentos em presença.
No que se refere ao Direito uniforme e ao Direito unificado importe distinguir, em primeiros lugar, conforme a aplicação destes Direitos depende ou não do sistema de Direito do Conflitos.
Se depende do sistema de Direitos de Conflitos trata-se de uma regulação de situações transnacionais por meio deste sistema. A única especialidade está em que o objecto da remissão operada pelo Direito e Conflitos não é constituído por normas materiais internas mas por normas materiais internacionais.
A unificação não têm carácter geral. São limitadas as áreas jurídicas objecto da unificação. A unificação também não é universal. Nem todos os Estados são partes nas convenções de Direito material unificado.
As normas de Direito material unificado suscitam, naturalmente, problemas de interpretação.
Na falta de órgãos internacionais de aplicação do Direito material unificado são os tribunais estaduais e da arbitragem comercial internacional que são chamados a resolver os problemas de interpretação e integração de lacunas.
Entende-se que os tribunais estaduais e arbitrais devem respeitar a autonomia e a especialidade do Direito unificado, e devem esforçar-se por favorecer a unidade internacional de interpretação. Só desta forma se respeita o fim visado pelo legislador internacional.
Algumas convenções contem mesmo disposições neste sentido. È exemplar o art. 7º da Convenção das Nações Unidas sobre a Venda Internacional de Mercadorias.
Por conseguinte, a interpretação do Direito material unificado deve ser autónoma relativamente ao Direito material dos estados contratantes e obedecer aos critérios de interpretação aplicáveis aos tratados internacionais. Até onde for possível, o conteúdo atribuído a um conceito utilizado numa norma convencional deve ser o mesmo qualquer que seja o órgão estadual de aplicação.
Mas podem também surgir soluções diferentes nos tribunais de diferentes Estados. Quando isto se verifique, não deverá atender á solução jurisprudencialmente consagrada no ordenamento competente segundo o sistema de Direitos de Conflitos?
Quando for competente a jurisdição estadual, parece que a resposta deve ser afirmativa, isto é, que deve atender á solução consagrada no ordenamento nacional competente segundo o sistema de Direito de Conflitos.
Já perante uma jurisdição arbitral só será pertinente atender á orientação de uma particular jurisprudência nacional quando as partes tenham escolhido o respectivo sistema jurídico para reger a situação. Não sendo este o caso, o tribunal arbitral deverá procurar a solução mais apropriada atendendo, designadamente, aos princípios comuns aos sistemas dos Estados conectados com a situação.

E) Regulação por normas de Direito comum do foro “autolimitadas” e relevância de normas imperativas estrangeiras. Remissão.

A moderna doutrina internacional privatística tem chamado a atenção para a existência de normas de Direito comum cuja aplicação a situações transnacionais também não depende do sistema de Direito de Conflitos. Fala-se a este respeito de normas “autolimitadas” e de normas de aplicação imediata ou necessária.
Diz-se “autolimitada” aquela norma material cuja esfera de aplicação no espaço não corresponde á que resultaria da actuação do sistema de Direito de Conflitos.
Isto pode resultar, em primeiro lugar, de esta norma material ser acompanhada de uma norma de conflitos especial (explícita ou implícita). Tal norma de conflitos é unilateral e ad hoc porque se reporta exclusivamente a uma norma material determinada da ordem jurídica do foro.

F) Reconhecimento de efeitos de actos públicos e de decisões arbitrais estrangeiras

Foi atrás assinalado que o Direito Internacional Privado também regula as situações transnacionais mediante o reconhecimento das situações jurídicas fixadas por decisão estrangeira, sob certas condições.
Esta técnica de regulação apresenta duas diferenças fundamentais relativamente à consubstanciada pelo sistema de Direito de Conflitos.
Em primeiro lugar, esta técnica de regulação só opera quando tenha sido proferida no estrangeiro uma decisão “privada”.
Segundo, em lugar das normas de conflitos gerais são actuadas normas de reconhecimento, que integram uma categoria especial de regras remissivas.

G) Conclusões

A primeira conclusão é a de que esta regulação é, em regra, indirecta ou conflitual. A aplicação directa de Direito material só se justifica, excepcionalmente, relativamente a certas regras de Direito material especial, que designei por DIP material. Por conseguinte, as alternativas que se colocam ao sistema de Direito de Conflitos dizem fundamentalmente respeito à técnica de regulação conflitual.
Segundo, o Direito material especial de fonte interna apresenta-se, em regra, como uma técnica de regulação por via do sistema de Direito de Conflitos por utilizar normas de conexão especiais, mais precisamente normas de conexão ad hoc que se reportam a uma determinada regra ou lei material.
Terceiro, dos métodos de unificação internacional, só a unificação stricto sensu, isto é , a criação de um Direito material especial de fonte supraestadual assume significado específico para a regulação das situações transnacionais.
Quarto, o recurso ao Direito material unificado não prescinde, em regra de normas de conexão.
Quinto, a criação do Direito material unificado, se por um lado limita a actuação do sistema de Direito de Conflitos, por outro vem introduzir novos problemas conflituais, designadamente os que dizem respeito à sua esfera de aplicação no espaço.
Sexto, o Direito material unificado constitui até certo ponto uma alternativa global ao sistema de Direito de Conflitos, principalmente no domínio do tráfico corrente de bens e serviços.
Por último, o reconhecimento de efeitos de decisões estrangeiras constitui uma técnica de regulação conflitual, que se coloca a par do sistema de Direito de Conflito, e que se caracteriza por pressupor a existência de uma decisão “privada” estrangeira e por utilizar normas de reconhecimento.

● Regulação pelo Direito Internacional Público e pelo Direito Comunitário

A) Regulação pelo Direito Internacional Púbico

Entende-se por regulação pelo DIPúblico aquela que opera na esfera da ordem jurídica internacional. A situação é regulada na esfera da ordem jurídica internacional quando lhe for directa e imediatamente aplicável DIPúblico e os litígios que lhe dizem respeito forem apreciados por jurisdições no DIPúblico.
As situações de que tradicionalmente se ocupa o DIP são situações que, apesar da sua “internacionalidade”, relevam primariamente na esfera institucional e de regulação dos Estados.
Inscrevem-se na esfera institucional dos Estados porque os órgãos de aplicação do Direito que são chamados a apreciá-las são órgãos estaduais.
Relevam primariamente da esfera de regulação dos Estados porque não são directa e imediatamente reguladas por normas de Direito Internacional. Os sujeitos destas situações não são sujeitos de Direito Internacional e, portanto, não podem ser destinatários das suas normas.
Segundo a concepção tradicional o acesso ás jurisdições internacionais é reservado aos Estados. Assim, o art. 34º/1 do Estatuto de Tribunal Internacional de Justiça.
Na actualidade os particulares podem ser partes na arbitragem quási – internacionalpública e em algumas jurisdições de organizações internacionais e têm acesso a certas jurisdições internacionais em matéria de direitos fundamentais, designadamente.
O que é a arbitragem quási – internacionalpública? Trata-se de uma arbitragem organizada pelo Direito Internacional mas tendo por objecto litígios emergentes de relações estabelecidas com particulares. Os particulares têm acesso directo a estas jurisdições, que podem apreciar a título principal os direitos e obrigações dos particulares, e que não aplicam necessariamente, ao fundo da causa, o Direito Internacional. Portanto, coloca-se um problema de determinação do Direito aplicável relativamente á questão principal.
Passe-se agora á relações com organizações internacionais. Em alguns casos as jurisdições internacionais organizadas pelos actos constitutivos de organizações internacionais, ou actos dos seus órgãos fundados nos actos constitutivos, para conhecerem de litígios emergentes de relações internas, também são competentes para os litígios emergentes de relações estabelecidas com particulares.
Também se verifica o acesso de particulares a jurisdições internacionais em caso de violação por Estados contratantes de convenções em matéria de direitos fundamentais.

B) Regulação pelo Direito Comunitário

A admitir-se, com a tese dominante, que o Direito Comunitário constitui uma ordem jurídica autónoma – a ordem jurídica comunitária – coloca-se o problema da relevância directa de situações transnacionais perante esta ordem jurídica, em termos paralelos ao da relevância directa perante a ordem jurídica internacional.
O Direito Comunitário apresenta uma vocação mais ampla que o DIPúblico actual para regular directa e imediatamente situações transnacionais. Com efeito, segundo o entendimento seguido pelo TCE, e que parece merecer certo favor na doutrina portuguesa, o Direito Comunitário auto – executório tem eficácia para os particulares independentemente do Direito interno dos Estados – membros. A seguir-se este entendimento, o Direito Comunitário é susceptível de eficácia directa e imediata para os particulares e, por conseguinte, certas relações entre particulares podem ser directamente conformadas e reguladas pelo Direito Comunitário.
No entanto, deve reconhecer-se que a relevância das relações entre particulares na esfera institucional comunitária é limitada: as jurisdições competentes para conhecer dos litígios emergentes das relações entre particulares são normalmente estaduais ou arbitrais. Estas jurisdições não estão hierarquicamente subordinadas ao TCE.
Por conseguinte, as jurisdições estaduais, quando aplicam Direito Comunitário, fazem-no por força de normas da ordem jurídica estadual (mormente as normas constitucionais de recepção).
Em suma, a situação actual parece caracterizar-se por um certo compromisso ou transição entre o quadro que corresponde ao relacionamento entre Direito Internacional derivado clássico e o Direito interno dos Estados por ele vinculados e que resulta da integração das ordens jurídicas destes Estados numa ordem jurídica complexa.
Com efeito, o TCE tem competência:
- Para conhecer dos litígios relativos a responsabilidade extracontratual das suas instituições ou agentes (art. 235º Tratado de Roma);
- Para decidir com fundamento em “cláusula compromissória” constante de um contrato de Direito público ou de Direito privado, celebrado pela Comunidade ou por sua conta (art. 238º do Tratado de Roma).
No que toca á responsabilidade extracontratual o art. 288º/2 remete para os princípios gerais comuns aos Direitos dos Estados – Membros.
No que se refere à competência para apreciar litígios emergentes de contratos de Direito privado ou de Direito público celebrados pela Comunidade ou por sua conta, o art. 288º/1 do Tratado de Roma determina que a responsabilidade contratual da Comunidade é regulada pela lei aplicável ao contrato em causa.

● Regulação por Direito autónomo do comércio internacional

A) Aspectos gerais

O fenómeno é susceptível de se manifestar tanto no comércio local como nas relações transfronteiriças.
Por Direito autónomo do comércio internacional entendo aquelas regras e princípios aplicáveis às relações do comércio internacional que se formam independentemente da acção dos órgãos estaduais, a nova lex mercatoria.
Naturalmente que estas regras e princípios podem ser relevantes na ordem jurídica estadual.
O que neste momento interessa focar é a regulação directa e imediata de situações transnacionais pelo Direito autónomo do comércio internacional, isto é, independentemente da mediação de uma ordem jurídica estadual.
A arbitragem comercial internacional é o modo normal de resolução contenciosa de litígios no comércio internacional. O recurso aos tribunais estaduais é, neste domínio, marginal.
Vamos começar por examinar as principais teses favoráveis ao Direito autónomo do comércio internacional, indagar em seguida do significado real da lex mercatoria na regulação das relações comerciais internacionais, passando depois à apreciação crítica destas teses e finalizando com a relevância da lex mercatoria na arbitragem comercial internacional.

B) Teses favoráveis ao Direito autónomo do comércio internacional

Para uma primeira tese, que se deve sobretudo a Schmitthoff, a lex mercatoria é encarada essencialmente enquanto Direito material especial do comércio internacional dotado de um certo grau de uniformidade internacional.
A concepção que vê na lex mercatoria uma ordem jurídica autónoma do comércio internacional, ou, pelo menos, uma ordem jurídica em formação, é a que tem suscitado maior polémica. O seu principal impulsionador é Goldman.
As contribuições mais recentes tendem a acentuar a origem pretoriana da lex mercatoria. As regras e “princípios” que lhe são atribuídos resultam principalmente do apuramento e da concretização, pela arbitragem comercial internacional, de princípios gerais de Direito e de “princípios comuns” aos sistemas nacionais em presença.

C) Significado real da lex mercatoria na regulação das relações comerciais internacionais

Há um vasto consenso sobre a existência de ramos de actividade económica marcados por um elevado grau de internacionalização, de padronização do conteúdo negocial dos contratos e de recurso à arbitragem para a resolução dos litígios dele emergentes.
São exemplos, os “contratos bancários” internacionais.
A maioria dos estudos assinala que os usos do comércio internacional se formam, em princípio, no âmbito de cada um dos sectores do comércio internacional e que, por vezes, se revestem igualmente de carácter regional. Afirma-se que raramente os usos obtêm um reconhecimento á escala mundial.
Na arbitragem comercial internacional verifica-se um amplo recurso a Direito extra-estadual.
O “progresso da lex mercatoria” na conformação dos contratos internacionais parece dever-se mais à averiguação e à concretização de “princípios gerais” pela jurisprudência arbitral que ao desenvolvimento de um Direito consuetudinário do comércio internacional.
Os “princípios” não são, de per si, Direito objectivo aplicável a contratos internacionais. Os “princípios” são meros modelos de regulação que podem ser incorporados no contrato, com o valor de cláusulas contratuais, ou podem ser recebidos no conteúdo de normas materiais de um Direito estadual ou de uma convenção internacional.
As soluções a que os tribunais arbitrais chegam, mediante a concretização de princípios gerais ou a referência a modelos de regulação não podem ser genericamente consideradas como regras de Direito objectivo.
E a decisão arbitral também não vem, por si, estabelecer uma regra vinculativa.

D) Apreciação crítica das teses favoráveis ao Direito autónomo do comércio internacional e posição adoptada

As teses favoráveis ao Direito autónomo do comércio internacional têm deparado com a oposição da “doutrina tradicional”, isto é daqueles autores para quem as situações transnacionais são sempre reguladas ao nível da ordem jurídica estadual por meio da remissão para o Direito estadual.
A crítica movida à lex mercatoria pela “doutrina Tradicional” assenta em dois postulados. Primeiro, as situações transnacionais só relevariam directa e indirectamente perante as ordens jurídicas estaduais.
Segundo, a criação de Direito por particulares dependeria da permissão do legislador estadual. Como assinala Isabel de Magalhães Collaço, a vigência de regras jurídicas da lex mercatoria não supõe necessariamente a sua inserção numa ordem jurídica.
Estas regras vigoram autonomamente na medida em que são reconhecidas como critérios vinculativos de conduta pelos sujeitos do comércio internacional e que são aplicadas na arbitragem comercial internacional, independentemente da sua reacção por uma ordem jurídica estadual.

E) A relevância da lex mercatoria na arbitragem comercial internacional

Uma vez que a arbitragem comercial internacional é, como já se assinalou, a jurisdição normal dos litígios do comércio internacional, importa averiguar se, e até que ponto, a lex mercatoria é fonte de Direito directamente aplicável nesta jurisdição.
O estatuto da arbitragem compreende as normas e princípios relativos à constituição, competência e funcionamento do tribunal arbitral, bem como os que dizem respeito à determinação do Direito aplicável ao fundo da causa.
Nas hipóteses mais comuns a vinculação directa dos árbitros a regras ou princípios da lex mercatoria só pode assentar na sua vigência como Direito consuetudinário da arbitragem comercial internacional.
O Direito da Arbitragem Comercial Internacional é um terreno privilegiado para o desenvolvimento de costume jurisprudencial, isto é de costume baseado na jurisprudência arbitral.
No que se refere ao Direito aplicável ao fundo da causa, a questão que se coloca é a da aplicabilidade directa e imediata de proposições jurídico – materiais da lex mercatoria à relação controvertida. Por outras palavras, se a lex mercatoria pode ser aplicada à relação controvertida independentemente da sua recepção por uma ordem jurídica estadual.
A resposta é afirmativa. O Direito Transnacional é aplicável por força de normas de conflitos de Direito da Arbitragem Internacional.
Segundo a regra consagrada pela unificação internacional do Direito da Arbitragem Comercial Internacional e pelos regulamentos de centros de arbitragem o tribunal arbitral deverá sempre tomar em consideração as disposições do contrato e dos usos do comércio.
A consideração dos usos do comércio internacional independentemente de “remissão” operada por Direito estadual parece constituir hoje regra geralmente reconhecida na arbitragem comercial internacional.
Mediante a positivação operada por esta regra, os usos do comércio internacional são aplicáveis na decisão do fundo da causa independentemente quer da sua recepção por uma ordem jurídica estadual quer de uma remissão operada por uma proposição conflitual.

F) Conclusões

Em primeiro lugar, confirma-se que há um sector importante das situações transnacionais que, em regra, são objecto de regulação directa e imediata pelo Direito autónomo do comércio internacional. Este sector corresponde fundamentalmente aos contratos do comércio internacional.
Segundo, esta hipótese verifica-se quando as partes estipulam uma convenção de arbitragem. Na falta de uma convenção de arbitragem os litígios emergentes das relações do comércio internacional são apreciados por tribunais estaduais segundo técnicas de regulação próprias do Direito estadual.
Não obstante, a regulação directa e imediata pelo Direito autónomo do comércio internacional não subtrai inteiramente as situações em causa à regulação pelo Direito estadual.
Enfim, a regulação pelo Direito autónomo do comércio internacional é, em parte, indirecta ou conflitual, e, noutra parte directa e material. Na medida em que se coloca um problema de determinação do Direito aplicável que tem de se resolvido segundo o princípio da autonomia da vontade e, na falta de designação pelas parte, segundo normas de conexão ou outros critérios próprios da arbitragem comercial internacional, trata-se de um processo de regulação indirecta ou conflitual. Mas dada a atribuição de valor interpretativo e integrativo do negócio jurídico aos usos do comércio internacional independentemente do Direito estadual eventualmente aplicável esta regulação também é, em parte, directa ou material.

● Considerações finais

No plano do Direito estadual opera-se uma regulação essencialmente indirecta ou conflitual. A regulação directa ou material é excepcional. E apesar dos progressos realizados pela unificação internacional do Direito material aplicável é ainda o sistema de Direito de Conflitos que desempenha a principal missão da regulação das situações transnacionais.
O panorama é muito diferente no plano do Direito Internacional Público e do Direito Comunitário e no plano do Direito autónomo do comércio internacional. Nestes planos a regulação tanto pode ser directa ou material como indirecta ou conflitual.
No plano do Direito Internacional Público e do Direito Comunitário a regulação indirecta ou conflitual ainda é a regra.
No plano do Direito autónomo do comércio internacional a regulação é em parte indirecta e em parte directa. Regista-se o recurso ao Direito de Conflitos para determinar o Direito aplicável à situação, mas, concorrentemente, são tomadas em consideração os usos do comércio internacional. O Direito de Conflitos aplicável também não é o sistema de Direito de Conflitos de um particular Estado.

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