terça-feira, 4 de janeiro de 2011

elementos da norma de conflitos e interpretação

Elementos da norma de conflitos

A) Previsão da norma de conflitos

1) Objecto da norma de conflitos. A previsão da norma de conflitos define os pressupostos de cuja verificação depende a sua aplicação. Através destes pressupostos, a previsão da norma delimita o seu objecto.
O objecto da norma de conflitos é a situação transnacional. As normas de conflitos do tipo utilizado no Direito Conflitos de fonte interna delimitam as situações da vida através de conceitos técnico – jurídicos que atendem ao conteúdo típico e a notas funcionais.
Por exemplo, a norma de conflitos do art. 25º CC reporta-se a “estado”, “capacidade”, “relações de família”, “sucessões por morte”; a norma do art. 46º CC a “posse”, “propriedade” e “direitos reais”.
Assim, as normas de conflitos deste tipo determinam a aplicação de certa ordem local a uma categoria de situações ou a uma dada questão parcial, por exemplo, a capacidade.
Importa pois que a previsão de uma norma de conflitos compreenda aquelas situações, e só aquelas, para quais, segundo o juízo de valor legislativo, é adequada a conexão.

2) O fenómeno do dépeçage e as suas implicações. Muitas normas de conflitos não se reportam a situações típicas globalmente consideradas mas apenas a certos aspectos parcelares – por exemplo, as normas de conflitos que se reportam à capacidade negocial ou á forma do negócio jurídico.
Estas normas reportam-se a questões parciais. Por exemplo, a norma de conflitos contida no art. 36º não regula o negócio jurídico na sua globalidade, mas apenas os requisitos de validade formal.
Este fenómeno de fraccionamento das situações transnacionais pelo Direito de Conflitos é geralmente designado como dépeçage.
O dépeçage vem realçar a função reguladora do direito de Conflitos. Em regra, a globalidade da disciplina de uma concreta relação da vida internacional só pode ser definida por uma actuação de uma pluralidade de normas de conflitos. Acresce que, por vezes, a mesma norma de conflitos admite o chamamento de mais de um Direito para reger diferentes questões, como se verifica em matéria de obrigações voluntárias.
O depeçage traz consigo o risco de contradições normetivas ou valorativas, ou de dessintonias, entre as proposições jurídicas que são pedidas a diferentes ordens jurídicas. Este risco é tanto maior quanto mais vasto for o alcance da previsão da norma de conflitos.
A preservação da harmonia material exige então do DIP a reconstrução da unidade e coerência perdidas com o fraccionamento do Direito aplicável, mediante a conjugação dos diferentes estatutos. Para o efeito, as normas de conflitos têm de desempenhar uma função modeladora do resultado material, que pode passar nomeadamente por uma adaptação.


B) Estatuição

1) A estatuição da norma de conflitos. A estatuição da norma de conflitos, a consequência jurídica que desencadeia, é tradicionalmente identificada com a conexão. A conexão é o chamamento de um ou mais Direitos para regularem a questão.
Pode todavia pensar-se que à dupla função técnico – jurídica da norma de conflitos corresponde uma dupla consequência jurídica ou, com mais rigor, uma consequência jurídica complexa.
Por um lado a norma de conflitos remete para um Direito. Esta remissão é geralmente feita através de uma conexão, mas como já sabemos que nem todas as normas de conflitos são normas de conexão, é preferível designar esta primeira consequência por remissão.
Um segundo problema, que se coloca tanto quando a remissão é feita para o Direito estrangeiro como quando é feita para o Direito do foro, diz respeito ao alcance material da remissão.
O conjunto de proposições jurídico – materiais que são chamadas por uma norma de conflitos é geralmente designado por “estatuto”. Em certos casos a palavra “estatuto” também pode designar o conjunto de proposições jurídico – materiais que são chamadas pelas várias normas de conflitos que regulam âmbito de matérias.

2) Modalidades de conexão em geral. A conexão pode ser singular ou plural.
A conexão é singular quando, em resultado, desencadeia a aplicação de um só Direito para reger a situação.
É plural quando, em resultado, desencadeia a aplicação de mais de um Direito para regular a questão.
A conexão singular subdivide-se em simples, subsidiária, alternativa e optativa.
Na conexão singular simples a norma de conflitos designa por forma directa e imediata um único Direito aplicável à questão. É exemplo a norma de conflitos do art. 46º/1 CC.
Na conexão singular subsidiária a norma de conflitos dispõe de uma série de elementos de conexão que operam em ordem sucessiva, por forma a que a actuação do elemento de conexão seguinte depende da falta de conteúdo concreto do elemento de conexão anterior.
A norma de conflitos que resulta da conjugação dos arts. 25º, 31º e 32º CC, as matérias do estatuto pessoal são em princípio reguladas pela lei da nacionalidade; na falta de nacionalidade pela lei da residência habitual; e na falta de residência habitual, pela lei da residência ocasional.
Na conexão singular alternativa a norma de conflitos contém dois ou mais elementos de conexão, susceptíveis de designarem dois ou mais Direitos, sendo efectivamente aplicado aquele que, no caso concreto, se mostrar mais favorável à produção de determinado efeito jurídico. È o que se verifica, por exemplo, no art. 36º CC.
Na conexão singular optativa a norma de conflitos também dispõe de dois ou mais elementos de conexão, susceptíveis de designarem dois ou mais Direitos, mas é agora a vontade de uma determinada categoria de interessados que vai determinar o Direito efectivamente aplicável. Esta modalidade de conexão é de rara verificação.
Um exemplo no art. 5º do regime jurídico dos acidentes de trabalho e das doenças profissionais (Lei nº 100/97 de 13/9). Combina-se aqui uma remissão condicionada com uma conexão optativa: se a lei do país onde ocorreu o acidente reconhecer o direito à reparação, a aplicação desta lei ou da lei portuguesa vai depender da opção do trabalhador.
A conexão plural pode assumir duas modalidades: cumulativa simples e condicionante.
Na conexão cumulativa simples a norma de conflitos exige, para que se produza certo efeito jurídico, a concorrência de dois ou mais Direitos; o efeito tem de ser desencadeado ou reconhecido simultaneamente por dois ou mais Direitos.
Por exemplo, a norma de conflitos contida no art. 33º/3 CC. A manutenção da personalidade jurídica da pessoa colectiva depende da concorrência de duas leis diferentes.
A conexão cumulativa simples apresenta-se como simétrica relativamente à conexão alternativa
A conexão plural condicionante difere da cumulativa simples porque não há uma atribuição de competência paritária a dois ou mais Direitos. A norma de conflitos chama um Direito como primariamente competente, mas atribui a outro sistema uma função limitativa ou condicionante quanto à produção de certo efeito.
Por exemplo, o art. 60º CC, nº 1 ou 2 definem o Direito primariamente competente para a constituição da filiação adoptiva que é a lei pessoal do adoptante, ou, se a adopção for realizada por marido e mulher ou o adoptando for filho do cônjuge do adoptante, sucessivamente, a lei nacional comum dos cônjuges, a lei da sua residência habitual comum ou a lei do país com a qual a vida familiar se ache mais estreitamente conexa.
Como a cumulativa simples, também a conexão condicionante pode resultar de um juízo de valor desfavorável relativamente à produção de certo efeito.
Segundo um outro critério, as conexões podem classificar-se em autónomas ou dependentes. Em regra as conexões são autónomas, porque a respectiva norma de conflitos dispõe de um elemento de conexão que opera a designação do Direito aplicável. A conexão é dependente quando é necessário recorrer a outra norma de conflitos para determinar o Direito aplicável, porque a norma de conflitos não dispõe de um elemento de conexão autónomo. È o que se verifica, por exemplo, com o art. 36º, quando remete para a lei da substância do negócio, e, com o art. 40º, quando remete para a lei aplicável ao direito a que se refere a prescrição ou caducidade.

C) O elemento de conexão

1) Noção e função. Segundo a noção tradicional o elemento de conexão é um laço entre uma situação da vida e dado ordenamento de um Estado soberano que se entende ser o determinante para a escolha do ordenamento aplicável.
Em meu entender, o elemento de conexão pode consistir:
i) num laço fáctico entre um dos elementos da situação da vida e um determinado lugar no espaço que permita individualizar o Direito aí vigente; por exemplo, no art. 45º CC, o lugar onde decorre a actividade causadora do prejuízo;
ii) num vínculo ou qualidade jurídica que permita individualizar o Direito que o estabelece; por exemplo, a nacionalidade e o domicílio;
iii) um facto jurídico, tal como a designação pelas partes do Direito aplicável;

O elemento de conexão é diferente da conexão. O elemento de conexão individualiza o Direito a ser aplicado. A conexão é o chamamento de uma ou mais ordens jurídicas. O elemento de conexão estabelece a “ponte” entre a situação e a ordem jurídica aplicável.
O elemento de conexão é um elemento essencial da norma de conexão. A norma de conexão tem uma estrutura tripartida (previsão/estatuição/elemento de conexão) que a distingue das restantes normas que têm uma estrutura bipartida (previsão/estatuição).

2) Classificações do elemento de conexão. Segundo uma primeira classificação os elementos de conexão podem referir-se ás pessoas, isto é, aos sujeitos da relação, dizendo-se pessoais, ou ao seu objecto ou a factos materiais, dizendo-se reais.
Referem-se às pessoas a nacionalidade, o domicílio, a residência habitual e a sede de uma pessoa colectiva.
Referem-se ao objecto o lugar da situação da coisa e o lugar do destino das coisas em trânsito.
Referem-se a factos materiais, designadamente, o lugar onde é praticado o delito, o lugar da celebração de um acto e o lugar onde se desenrola um processo.
Uma segunda classificação atende ao modo como os elementos de conexão realizam a sua função de designação do Direito aplicável.
Esta função é realizada:
i) por via directa – quando o elemento de conexão aponta directamente o Direito aplicável, sem a mediação de um preciso ponto no espaço;
ii) por via indirecta – quando o elemento de conexão aponta para um determinado lugar no espaço, como via para, indirectamente, designar como aplicável o Direito vigente nesse lugar.

Uma terceira classificação atende á estrutura do elemento de conexão. Deste ponto de vista podem classificar-se os elementos de conexão conforme os conceitos designativos são descritivos (ou de facto) ou técnico – jurídicos (ou normativos).
São descritivos ou de facto, por exemplo, os elementos de conexão lugar da situação da coisa e lugar da prática do delito.
São técnico – jurídicos, por exemplo, os elementos de conexão nacionalidade e domicílio.
Uma quarta classificação atende à modificabilidade temporal do conteúdo concreto do elemento de conexão. Segundo este critério os elementos de conexão são móveis ou imóveis.
São móveis os elementos de conexão cujo conteúdo concreto é susceptível de variar no tempo, por exemplo, a nacionalidade, a residência habitual, o lugar da situação das coisas móveis.
São imóveis os elementos de conexão cujo conteúdo concreto é invariável no tempo, por exemplo, o lugar da situação das coisas imóveis, o lugar da celebração do negócio, o lugar onde decorre a actividade causadora do prejuízo.

● A determinação da conexão em função das circunstâncias do caso concreto.

A) Em geral

A determinação do Direito aplicável não resulta, então da concretização do elemento de conexão fixado numa norma de conflitos, mas de critérios flexíveis que deixam uma margem de apreciação ao intérprete.
Na estrutura destas proposições conflituais não encontraremos um conceito designativo do elemento de conexão. Este é substituído por um conceito altamente indeterminado, como o de “vinculação mais estreita” ou “Direito mais apropriado ao litígio”.
Algumas destas proposições jurídicas poderão ser consideradas cláusulas gerais, dado a sua previsão, muito ampla, carece de ser preenchida com recurso a critérios valorativos.
Outras normas de conflitos delimitam a sua previsão com recurso a categorias de situações jurídicas, tais como “obrigações contratuais” e “relações entre cônjuges”, mas utilizam conceitos indeterminados para designarem critérios gerais de conexão, tais como “a lei do país com o qual apresente uma conexão mais estreita” ou “ a lei com a qual a vida familiar se ache mais estreitamente conexa”.

B) O critério da conexão mais estreita

O critério da conexão mais estreita surge, no nosso Direito de Conflitos, no art. 4º da Convenção de Roma sobre a Lei Aplicável às Obrigações Contratuais, no art. 52º/2, 2ª parte CC, em matéria de relações entre cônjuges e no art. 60º/1 in fine CC em matéria de adopção.
Trata-se em primeira linha, de uma valoração conflitual, que atende aos laços existentes entre a situação em causa e a esfera social dos Estados.

C) A cláusula de excepção

A cláusula de excepção é uma proposição que permite afastar o Direito primariamente aplicável de um Estado, quando a situação apresenta uma ligação manifestamente mais estreita com outro Estado.
Enquanto nas normas de conflitos com conceito designativo indeterminado a justiça do caso concreto intervém na designação do Direito primariamente aplicável, nas cláusulas de excepção a equidade conflitual intervém para corrigir a designação do Direito primariamente aplicável, quando a situação apresenta uma ligação manifestamente mais estreita com outro Direito.
No Direito de Conflitos português não vigora uma cláusula geral de excepção.


Capítulo VI – Interpretação e Aplicação da Norma de Conflitos

● Interpretação da norma de conflitos

A) Generalidades

No Direito de Conflitos português vigoram normas de fonte interna e normas de fonte supraestadual.
Os critérios de interpretação aplicáveis são os que regem a interpretação de cada uma destas categorias de normas.
Relativamente ás normas de fonte interna deve ter-se em conta o disposto nos arts. 8º e 9º CC e a metodologia desenvolvida pela ciência jurídica.
Quanto às normas de fonte internacional há que atender às regras próprias que se estudam no DIPúblico e, designadamente, ao disposto no art. 31º da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados.
As normas de conflitos estrangeiras devem ser interpretadas segundo os critérios que lhes forem aplicáveis no sistema a que pertencem.

B) Normas de conflitos de fonte interna

As normas de conflitos de fonte interna têm de ser interpretadas como parte do sistema jurídico português.
Mas se a interpretação é ancorada no Direito material interno, ela não lhe está subordinada.
A interpretação da norma de conflitos é, por isso, uma interpretação autónoma relativamente ao Direito material interno.

C) Normas de conflitos de fonte supraestadual

De entre as normas de conflitos de fonte supraestadual avultam as normas de conflitos contidas em convenções internacionais de unificação do Direito de Conflitos. Segundo o sentido e o fim destas convenções a interpretação da norma de conflitos tem de ser autónoma relativamente às ordens jurídicas nacionais e assentar numa comparação de Direitos.
De modo algo diverso se colocam as coisas relativamente ao Direito Internacional de Conflitos, uma vez que se trata de normas de Conflitos aplicáveis por jurisdições internacionais ou quási – internacionais. Aqui a uniformidade de interpretação está garantida.

● A integração de lacunas no Direito de Conflitos

Numa primeira aproximação, podemos dizer que há uma lacuna da lei no Direito de Conflitos quando não encontramos uma norma de conflitos de fonte legal que indique a lei reguladora de determinada situação transnacional e que, segundo o sentido regulador do sistema, deve estar submetida àquele regime especial constituído pelo Direito de Conflitos.
Aparentemente, perante um sistema codificado as lacunas seriam raras. Sucede, porém, que a lacuna pode não ser patente, mas oculta. A lacuna oculta descobre-se mediante a interpretação dita restritiva ou a redução teleológica de uma norma de conflitos existente.
Afirma-se frequentemente que as lacunas de DIP são necessariamente patentes. Quer-se com isto significar que perante a falta de uma norma de conflitos aplicável a situação transnacional surge necessariamente uma lacuna, sendo de excluir que a situação deva ser regulada por uma aplicação directa do Direito material interno.
Na integração da lacuna devem ter-se em conta os critérios referidos no art. 10º CC e a metodologia desenvolvida pela ciência jurídica.
Em primeiro lugar, deve recorrer-se á norma aplicável a caso análogo (dita analogia legis).
Na falta de norma aplicável a um caso análogo, a solução do caso deve ser obtida mediante uma concretização dos princípios gerais e ideias orientadoras do DIP (dita analogia iuris).
Não sendo possível integrar a lacuna por um dos processos anteriores, caberá ao intérprete criar um critério de decisão “dentro do espírito do sistema “. Na formulação do critério de decisão o intérprete tem de respeitar os valores e os princípios de DIP, sem que, porém, a solução decorra da concretização destes valores e princípios. A solução tem de ser compatível com o sistema.
Acrescente-se que o intérprete tem de formular o critério de decisão sob a forma de uma proposição geral e abstracta, de uma regra de conflitos, que seja susceptível de ser seguida em casos semelhantes.
Importa ainda observar que as lacunas do Direito de Conflitos de fonte legal podem ser integradas pelo costume praeter legem e que, por conseguinte, só haverá lugar para o recurso aos processos de integração atrás referidos na falta de norma de conflitos de fonte consuetudinária que seja aplicável.

● A aplicação no tempo e no espaço do Direito de Conflitos

A) Preliminares. A norma de conflitos como norma de conduta.

À semelhança do que se verifica no domínio da física com o princípio da relatividade, também o Direito estadual é relativo no espaço – perante a coexistência de uma pluralidade de sistemas – e no tempo – dada a mutabilidade das ordens jurídicas.
Mas esta afirmação é geralmente pensada para as normas materiais de conduta. Poderá ela ser aplicada ao DIP?
Uma primeira questão que se suscita é a de saber se as normas de conflitos serão normas de conduta, isto é, se tem por missão orientar a actuação dos sujeitos jurídicos.
Enquanto norma agendi a norma de conflitos tem o âmbito de aplicabilidade limitado pela existência de uma conexão espacial e temporal.
Segundo o entendimento atrás adoptado as normas de conflitos são normas de regulação indirecta e que, por regra, têm por função orientar a conduta dos sujeitos jurídicos.
Designadamente não há razão para a priori considerar que as normas de conflitos portuguesas são, no tempo, de aplicação imediata e que, no espaço, reclamem uma esfera de aplicação universal.
B) Aplicação no tempo do Direito de Conflitos

1) Identificação do problema. O inicio e termo da vigência das normas de conflitos não suscita dificuldades especiais, resolvendo-se por aplicação das regras gerais, designadamente as da vacatio legis.
O problema que aqui interessa examinar é o da sucessão no tempo das normas de conflitos.
Por exemplo, qual é a lei reguladora do regime de bens do casamento celebrado em 1965 entre um português e uma britânica, então residentes habitualmente em Londres, sem convenção antenupcial? O casamento foi celebrado na vigência do Código de Seabra. A norma do art. 1107º do Código de Seabra considerava competente a lei nacional do marido, que é a lei portuguesa. O CC de 1966 regula a matéria no art. 53º remetendo, na falta de nacionalidade comum, para a lei da residência habitual comum à data da celebração do casamento, que é a lei inglesa. Qual a norma de conflitos aplicável? A do Código de Seabra ou a do novo Código?
Perante a sucessão no tempo de normas de conflitos torna-se necessário delimitar o âmbito de aplicação da norma de conflitos antiga e da norma de conflitos nova. Por outras palavras, trata-se de determinar se a situação transnacional a regular está submetida á norma de conflitos antiga ou à norma de conflitos nova ou de distinguir os aspectos da situação que continuam a ser regidos pela norma de conflitos antiga daqueles que passam a ser regulados pela norma de conflitos nova.
Quanto ás situações jurídicas que são em parte regidas pela lei antiga e em parte pela lei nova é também necessário coordenar as duas leis por forma a fornecer uma regulação coerente e a evitar que, sem justificação suficiente, se comprometa a continuidade das situações.
Não deve confundir-se a questão da aplicação no tempo das normas de conflitos com o problema da sucessão no tempo das normas materiais do Direito aplicável. Por exemplo, quando tendo os cônjuges a mesma nacionalidade, tenha havido uma alteração do regime de bens supletivo no Direito da sua nacionalidade.

2) Solução. O problema pode ser resolvido pelo legislador por meio de normas transitórias que disponham expressamente sobre a aplicação no tempo do Direito de Conflitos.
Na omissão do legislador deve recorrer-se ao Direito Intertemporal da ordem jurídica em que estão integradas as normas de conflitos em causa. È a tese defendida entre nós por Isabel de Magalhães Collaço.
As regras especiais de Direito Intertemporal sobre a sucessão no tempo de normas de conflitos, não existem no Direito de fonte interna.
Por conseguinte, são em princípio aplicáveis as regras gerais contidas nos arts. 12º e 13º CC.
O art. 12º consagra como é concebido a doutrina do facto passado. A valoração jurídica dos factos ocorridos na vigência da lei antiga não é, em princípio pela lei nova.
A aplicação às normas de conflitos de normas especiais de Direito transitório que se reportam apenas a normas materiais tem de se fundamentar em analogia.
Voltando ao exemplo da lei aplicável ao regime de bens, parece ser de aplicar analogicamente o disposto no art. 15º do DL 47344 sobre a não – retroactividade dos arts 1717º a 1752º CC, que disciplinam materialmente os regimes de bens, salvo quando forem considerados como interpretativos do Direito vigente. De onde resulta que a nova norma de conflitos sobre regimes de bens só se aplica aos casamentos celebrados depois de 31/5/67. Por conseguinte, a norma de conflitos aplicável é a do Código de Seabra, e a entrada em vigor do CC de 1966 não altera o regime de bens do casamento.

C) Aplicação no espaço do Direito de Conflitos

1) Identificação do problema. Os ditos conflitos de sistemas de DIP. Cada ordem jurídica estadual tem o seu próprio DIP. Os progressos realizados na unificação do Direito de Conflitos e do regime de reconhecimento de efeitos de decisões estrangeiras não eliminaram as divergências entre os sistemas nacionais de DIP.
Já sabemos que nos casos em que não há harmonia, entre os sistemas nacionais em presença, quanto à determinação do Direito aplicável a uma situação transnacional, se fala em “conflitos de sistemas de DIP”.
A divergência entre dois sistemas nacionais de DIP, designadamente a utilização de elementos de conexão diferentes, podem conduzir a dois resultados diversos:
- se os dois Direitos reclamam aplicação à mesma situação temos um dito conflito positivo;
- se nem um nem outro dos sistemas se considera competente temos um dito conflito negativo.

Por exemplo, suponha-se que a capacidade matrimonial é regida no Estado X pela lei da nacionalidade e no Estado Y pela lei da residência habitual; um casamento celebrado por dois nacionais do Estado X, no Estado Y da sua residência habitual, pode ser válido perante o sistema jurídico do Estado da residência habitual mas inválido perante o sistema jurídico do Estado da nacionalidade.
O DIP de um Estado permite tomar em consideração o Direito de Conflitos estrangeiro.
O instituto da devolução, nomeadamente, relaciona-se com o conflito negativo de sistemas.
O princípio da maior proximidade opera em casos de conflito positivo.
Pergunta-se agora se o Direito de Conflitos vigente numa ordem jurídica estadual regula todas as situações transnacionais que ocorram no mundo, quaisquer que sejam os seus laços com o Estado do foro, e mesmo que não haja qualquer conexão entre a situação e o Estado do foro, ou se existem certos limites à sua esfera de aplicação no espaço.
Na exposição que se segue refiro-me exclusivamente ao Direito de Conflitos que regula situações que só relevam na ordem jurídica estadual.

2) Concepções tradicionais. São duas as concepções tradicionais nesta matéria:
- alcance universal e territorialismo quanto aos órgãos de aplicação do DIP;
- limitação do Direito de Conflitos pelo princípio dos direitos adquiridos.

Para a tese do alcance universal do DIP toda e qualquer designação da lei competente para regular uma situação transnacional passa exclusivamente pelo Direito de Conflitos do foro.
Quanto à limitação do Direito de Conflitos pelo princípio dos direitos adquiridos, o problema dos conflitos de leis suscita-se quando no momento da constituição de uma situação é necessário escolher entre várias leis em contacto com os factos constitutivos.

3) Posição adoptada. As teorias dos direitos adquiridos não são a resposta mais adequada para esta preocupação.
Ao falarmos de aplicação no espaço do Direito de Conflitos poderemos ter em vista o DIP no seu conjunto ou apenas as normas de conflitos gerais.
É obvio que um sistema de DIP pode conter regras que limitem a aplicação no espaço de normas de conflitos gerais e (ou) que dêem relevância na ordem interna ao Direito de Conflitos estrangeiro.
Se uma norma especial de DIP limita a aplicação no espaço de uma norma de conflitos geral, não há limite à aplicação no espaço do sistema estadual de DIP.
A aplicação de DIP estrangeiro por força do DIP do foro tanto pode estar ligada à limitação da esfera espacial de aplicação de uma norma de conflitos como ser independente desta limitação.
A seguir este raciocínio, e de acordo com o então exposto, o sistema de DIP de um Estado não será aplicável:
i) a situações que sejam abrangidas pela imunidade de jurisdição de um Estado estrangeiro;
ii) a situações “relativamente internacionais”, isto é puramente internas a outro Estado;
iii) a outras situações transnacionais quando não se verifique um dos títulos de competência legislativa anteriormente referidos.

Assim, em princípio, o DIP de um Estado não será primariamente aplicável a uma situação transnacional, que não apresente um laço pessoal ou territorial com o Estado do foro nem produza aí efeitos. Mas já será aplicável caso se trate de uma matéria em que se admite o pacto de jurisdição e as partes tiverem atribuído competência aos tribunais deste Estado.
O DIPúblico já não exclui que o DIP de um Estado regule uma situação que após se ter constituído como situação interna de um Estado estrangeiro venha a entrar em contacto, pelos seus elementos ou efeitos, com o Estado local.
Resta examinar até que ponto as normas de DIP do foro estabelecem limites internos, isto é, limites à aplicação no espaço das normas de conflitos gerais.
No sistema português, não há limites genéricos á aplicação no espaço das normas de conflitos gerais.
Vigoram na ordem jurídica portuguesa certas normas de conflitos que de um ou outro modo limitam o campo de aplicação no espaço de outras normas de conflitos. É o que se verifica com as seguintes normas de conflitos:
i) o art. 31º/2 CC, quando limita a competência da lei da nacionalidade para salvar a validade de negócios que tenham sido celebrados no país da residência habitual segundo o Direito deste país que se considere competente (é um limite à norma que resulta da conjugação do art. 25º com o art. 31º/1);
ii) O art. 47º CC, quando consagra um desvio à lei pessoal em matéria de capacidade para constituir direitos reais sobre imóveis ou para dispor deles quando a lex rei sitae se considere competente (é um limite à norma que resulta da conjugação do art. 25º com os arts. 31º/1 e 32º em que, como se assinalou, se manifesta o princípio da maior proximidade);
iii) O art. 37º da Lei da Arbitragem Voluntária, quando limita o DIP especial da arbitragem internacional às arbitragens que tenham lugar em território nacional.

Observe-se que as duas normas primeiramente referidas são normas de remissão condicionada que dão relevância ao Direito de Conflitos de estrangeiro.

4) Normas que permitem tomar em consideração o DIP estrangeiro. Além das normas de remissão condicionada atrás referidas (arts. 31º/2 e 47º CC), há outras normas que permitem tomar em conta a posição do DIP estrangeiro, sem contudo limitarem a aplicação no espaço de normas de conflitos. É o que se verifica:
- em matéria de devolução;
- na resolução de questões prévias, quando excepcionalmente seja de estabelecer uma conexão subordinada, nos termos que adiante se esclarecerão.
- com outras normas de remissão condicionada.

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