terça-feira, 4 de janeiro de 2011

esatuto direito estrangeiro

● Estatuto do Direito estrangeiro

A) Identificação do problema

Tradicionalmente o Direito aplicável às situações transnacionais é necessariamente o Direito vigente numa ordem jurídica estadual: a ordem jurídica do foro ou uma ordem jurídica estrangeira. Quando a norma de conflitos remete para uma ordem jurídica estrangeira levantam-se certas questões, designadamente quanto à interpretação, conhecimento e prova do Direito aplicável.
O problema que nos ocupa neste capítulo diz estritamente respeito àqueles casos em que a norma de conflitos que regula a situação no contexto da ordem jurídica portuguesa remete para uma ordem jurídica estrangeira.

B) Direito estrangeiro aplicável

O Direito aplicável é o que vigora na ordem jurídica designada pela norma de conflitos. Não têm de ser normas que emanam directamente de fonte estadual; podem ser normas de fonte não – estadual que segundo o sistema de fontes da ordem jurídica estrangeira, incluindo o seu sistema de relevância do Direito Internacional na ordem interna, vigoram nessa ordem jurídica.
Assim, são aplicáveis as normas de convenções de Direito material unificado e as normas de Comunidades supraestaduais que vigoram na ordem interna.
Também será respeitada a hierarquia das fontes da ordem jurídica estrangeira, o que pode ser importante, designadamente, quanto à relação entre o costume e a lei.
Quanto ao controlo da constitucionalidade das normas materiais estrangeiras à face da Constituição estrangeira, é de entender que o tribunal português o pode exercer em dois casos:
1) se a inconstitucionalidade foi declarada com força obrigatória e geral na ordem jurídica estrangeira;
2) se, nos termos em que, os tribunais do Estado estrangeiro possam exercer este controlo, como se verifica com o sistema de controlo difuso de constitucionalidade.

O Direito estrangeiro aplicável não tem de ser emanado de órgãos estaduais legítimos ou reconhecidos pelo Estado português.
Não tem de ser necessariamente Direito privado. Também serão aplicáveis as normas de Direito público e que ocupam zonas cinzentas entre o público e o privado que regulem ou tenham incidência sobre situações reguladas pelo DIP.
Resta acrescentar que a aplicação do Direito estrangeiro pode também não ser possível em dois casos. Primeiro quando este Direito exija a intervenção de uma autoridade pública e não exista, no estado local, nenhuma autoridade com competência para praticar os actos necessários.
Segundo, quando a sua aplicação requeira procedimentos especiais que sejam de todo incompatíveis com o Direito processual do foro.

C) Interpretação do Direito estrangeiro (art. 23º/1 CC)

O Direito estrangeiro tem de ser interpretado em conformidade com os critérios de interpretação seguidos no país de origem e com a jurisprudência e doutrina aí dominantes (art. 23º/1 CC).
A circunstância de a mesma regra vigorar simultaneamente em várias ordens jurídicas não impede que a respectiva interpretação seja diferente.

D) Conhecimento e prova do Direito estrangeiro

Para decidir, o tribunal precisa de conhecer os factos e o Direito. Segundo o princípio do dispositivo, os factos têm, em regra, de ser alegados e provados pelas partes.
Já o Direito deve ser conhecido pelo tribunal, deve ser investigado e determinado por sua própria iniciativa, em conformidade com o princípio da oficiosidade (art. 664º CPC).
Poderá exigir-se o conhecimento oficioso do Direito estrangeiro? Em Portugal a questão é resolvida pelo art. 348º/1 e 2 CC. Há um dever de colaboração das partes com o juiz. Não há um ónus da prova. O incumprimento do dever de colaboração não tem por consequência o indeferimento da pretensão, nem, necessariamente a aplicação do Direito material português, embora possa contribuir para uma situação de impossibilidade de determinar o conteúdo da lei estrangeira.
O Direito estrangeiro é de conhecimento oficioso, tem o estatuto de Direito.
Havendo real impossibilidade de determinar o conteúdo do Direito estrangeiro aplicável, o nº 2 do art. 23º CC manda passar à conexão subsidiária. Só na falta de conexão subsidiária é que de acordo com o nº3 do art. 348º CC há lugar à aplicação do direito material português.
A impossibilidade de determinar o conteúdo do Direito estrangeiro aplicável pode ser parcial, quando o tribunal só obtenha conhecimento de certos princípios gerais ou de algumas regras que não permitem resolver inteiramente o caso. Nesta hipótese, entendo que o tribunal deve aplicar as regras do Direito competente que conhece.
Quanto aos órgãos de aplicação do Direito, designadamente aos notários e conservadores, a lei não exige expressamente que conheçam oficiosamente o Direito estrangeiro aplicável.

Capítulo XIV – Limites à Aplicação do Direito Estrangeiro

● Reserva de ordem pública internacional

A) A reserva de ordem pública internacional enquanto cláusula geral que veicula princípios e normas fundamentais da ordem jurídica do foro

A reserva de ordem pública internacional encontra-se desde logo consagrada no art. 22º CC: “Não são aplicáveis os preceitos da lei estrangeira indicados pela norma de conflitos, quando essa aplicação envolva ofensa dos princípios fundamentais da ordem pública internacional do Estado português” (nº1).
A reserva de ordem pública internacional é um limite à aplicação do Direito estrangeiro competente segundo o Direito de Conflitos ou ao reconhecimento de efeitos de um acto público estrangeiro.
Esta ordem pública é “internacional” porque é específica do DIP e não porventura por ser uma ordem pública de Direito Internacional.
Numa ordem jurídica em que o Direito Internacional é objecto de recepção automática, como é o caso da ordem jurídica portuguesa, a ordem pública internacional é também informada por normas e princípios fundamentais de Direito Internacional.
A ordem pública internacional estrangeira pode ser relevante nos casos em que o Direito de Conflitos estrangeiro seja aplicado por força do DIP do foro. É o que se verifica em sede de devolução.
É usual contrapor-se a ordem pública internacional à ordem pública de Direito material, referida designadamente nos arts. 271º/1, 280º/2 e 281º CC.
Mas há diferenças óbvias entre os dois conceitos.
Neste momento interessa em primeira linha a reserva de ordem pública internacional enquanto limite à aplicação do Direito estrangeiro.
A actuação da reserva de ordem pública internacional pressupõe que o Direito de Conflitos português chama o Direito estrangeiro a regular a situação. O problema só se coloca depois de resolvidas todas as questões de concretização do elemento de conexão, de fraude à lei, de devolução e de qualificação. É o fim do processo que se aprecia a compatibilidade da solução a que conduz o direito estrangeiro designado com a ordem pública internacional.
O art. 22º CC acolhe a concepção aposteriorística de ordem pública internacional.
Na concepção vigente no direito português, a reserva de ordem pública internacional só intervém a posteriori, quando a solução material concreta a que o direito estrangeiro conduz é intolerável face a certos princípios e normas da ordem jurídica portuguesa.
A actuação da reserva de ordem pública internacional requer assim uma comparação dos efeitos desencadeados pela lei estrangeira com os que seriam ordenados pela lei do foro.
Creio, porém, que é justificada a tendência para separar a ordem pública internacional da temática das normas susceptíveis de aplicação necessária.
A “norma de aplicação necessária” sobrepõe-se ao sistema de Direito de Conflitos seja por força de uma norma de conflitos unilateral que prevalece, como norma especial, sobre a norma de conflitos geral ou de uma valoração casuística.
Vem a propósito referir as chamadas “cláusulas especiais de ordem pública”. Estas cláusulas especiais constituem, a meu ver, normas “autolimitadas” que por força de normas de conflitos unilaterais ad hoc são aplicáveis qualquer que seja o conteúdo da lei estrangeira que, na ausência delas, seria competente.

B) Outras características da ordem pública internacional

Uma característica fundamental da cláusula de ordem pública internacional consiste na sua excepcionalidade.
Esta cláusula só intervém como limite à aplicação do Direito estrangeiro quando a solução dada ao caso for apenas divergente da que resultaria da aplicação do Direito português, mas também manifestamente intolerável.
Enquanto limite ao reconhecimento dos efeitos de um acto público estrangeiro a cláusula de ordem pública internacional só intervém quando o reconhecimento for manifestamente incompatível com normas e princípios fundamentais da ordem jurídica do foro.
Uma outra característica da cláusula de ordem pública internacional é o seu carácter evolutivo. O conteúdo da ordem pública internacional acompanha a evolução da ordem jurídica, designadamente dos seus valores fundamentais que se encontram consagrados constitucionalmente.
A cláusula de ordem pública internacional caracteriza-se ainda pela relatividade, isto é pela sua actuação depender da intensidade dos laços da situação com o estado do foro.
Já oferece certa margem para dúvida a “variabilidade” da ordem pública internacional conforme se trata da constituição de uma situação ou do reconhecimento de efeitos de situações constituídas no estrangeiro.

C) Consequências da intervenção da reserva de ordem pública internacional

As consequências da intervenção da cláusula são o afastamento do resultado a que conduz a aplicação do direito estrangeiro ou o não reconhecimento dos efeitos de um acto público estrangeiro.
Quando a cláusula actua como um limite à aplicação do direito estrangeiro vale um princípio do mínimo dano à lei estrangeira.
Se o afastamento da solução contrária à ordem pública internacional não resultar uma lacuna a aplicar-se o Direito estrangeiro.

● Direito Internacional Público e direito Comunitário

A) Direito Internacional Público

A questão de saber se os órgãos estaduais de aplicação do direito podem, e até se devem controlar a conformidade com o Direito Internacional do Direito estrangeiro chamado pela norma de conflitos e de efeitos de actos públicos estrangeiros, foi discutida designadamente com respeito à expropriação ou nacionalização operada por um Estado estrangeiro.
Uma parte da doutrina pronuncia-se a favor do controlo. Em sentido contrário, algumas decisões negaram a existência de um princípio de Direito Internacional que permita aos tribunais de um Estado considerar inválida a lei estrangeira ou que obrigue os tribunais de um Estado a considerar à partida nulo um acto soberano estrangeiro que viole o Direito internacional.
Não creio que se deva duvidar da legitimidade do controlo perante o DIPúblico.
Já é mais complexa a questão de saber se há uma obrigação internacional de o realizar.
Creio que se deve distinguir entre o Direito Internacional Público directa e imediatamente aplicável na esfera interna e o restante DIPúblico. Quanto ao primeiro haverá uma obrigação internacional de controlar a conformidade do Direito estrangeiro com tais normas internacionais.
Em minha opinião, o DIPúblico constitui um limite autónomo, porque a aplicação das normas internacionais não depende necessariamente dos pressupostos de intervenção da ordem pública internacional.

B) Direito Comunitário

Considerações paralelas ás tecidas com respeito ao DIPúblico justificam que o Direito Comunitário constitua um limite autónomo á aplicação do Direito estrangeiro.

● Constituição

Foi atrás sublinhado que as normas e princípios constitucionais, principalmente os relativos a direitos fundamentais, assumem a maior importância para a ordem jurídica internacional. Resta saber até que ponto estas normas e princípios só actuam, enquanto limite à aplicação do Direito estrangeiro competente, através da ordem pública internacional, ou podem ser aplicados directamente a situações transnacionais.
Por um lado, nem todas as normas e princípios constitucionais seriam necessariamente veiculados pela ordem pública internacional; o órgão de aplicação do Direito poderia legitimamente considerar que certos preceitos constitucionais não constituem um limite á aplicação do Direito estrangeiro por não integrarem a ordem pública internacional.
Por outro lado, segundo a tradicional caracterização da reserva de ordem pública internacional, esta reserva não actua perante qualquer divergência entre o Direito estrangeiro e as concepções jurídicas do foro, mas só em caso de manifesta incompatibilidade; portanto, nem toda a violação de um preceito constitucional seria susceptível de desencadear a actuação da reserva de ordem pública internacional.
Para determinar se a lei estrangeira viola um direito fundamental e, assim, desencadeia a actuação da ordem pública internacional, há que avaliar a intensidade dos laços existentes com o estado do foro.
Em minha opinião é de afirmar uma pluralidade de modos de actuação da Constituição portuguesa como limite à aplicação do Direito estrangeiro designado pelo sistema de Direitos de Conflitos.
Primeiro, para certas normas constitucionais pode justificar-se a formulação de regras de conflitos unilaterais ad hoc.
Na omissão do legislador constitucional, estas normas de conflitos terão de ser desenvolvidos pela jurisprudência e pela doutrina.
Segundo, certas normas constitucionais poderão mesmo ser de aplicação universal, por consagrarem direitos básicos de todo o ser humano. Estas normas são aplicáveis a situações transnacionais independentemente de qualquer laço com o Estado português.
Terceiro, nos restantes casos, em que não é possível ou conveniente estabelecer regras de conflitos especiais nem se trata de normas constitucionais de aplicação universal, é necessária uma determinação casuística do âmbito de aplicação da norma. Estes casos são reconduzíveis à reserva de ordem pública internacional.
Mas a ordem pública internacional não só é informada pelas normas e princípios constitucionais como também tem de ser conformada à luz do primado da Constituição.
De entre as consequências deste modo de ver as coisas são de salientar três:
1) a vigência da cláusula geral da ordem pública internacional é imposta pela Constituição;
2) as normas e princípios constitucionais, designadamente em matéria de direitos, liberdades e garantias são sempre fundamentais e por conseguinte qualquer violação destas normas e princípios justifica a intervenção da ordem pública internacional;
3) parece de admitir que a fiscalização concreta da constitucionalidade pode ter por objecto as normas estrangeiras chamadas pela norma de conflitos, e que por conseguinte o Tribunal Constitucional é competente para controlar se a reserva de ordem pública internacional deve ser oposta à aplicação de norma estrangeira com fundamento na violação de norma constitucional.

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