terça-feira, 4 de janeiro de 2011

qualificação

A) Generalidades

A qualificação é um tema central do DIP. Numa acepção ampla, trata-se de resolver os problemas de interpretação e aplicação da norma de conflitos que dizem respeito aos conceitos técnico – jurídicos utilizados na sua previsão.
Estes conceitos delimitam o objecto de remissão. O que é o objecto da remissão, a matéria que a norma de conflitos remete para dado Direito?
O objecto da remissão são situações da vida ou aspectos de situações da vida transnacional.
Em sentido estrito, a qualificação é tradicionalmente concebida como a operação pela qual se subsume uma situação da vida, ou um seu aspecto, no conceito técnico – jurídico utilizado para delimitar o objecto da remissão.
A qualificação é um processo que se verifica quer na aplicação das normas de conflitos quer na aplicação das normas materiais.
O nosso sistema de Direito de Conflitos dispõe de uma norma relevante em matéria de qualificação. Nos termos do art. 15º CC a “competência atribuída a uma lei abrange somente as normas que, pelo seu conteúdo e pela função que têm nessa lei, integram o regime do instituto visado na regra de conflitos”.

B) Operações envolvidas na qualificação

Não deve isolar-se a interpretação da aplicação, nem a delimitação do âmbito de aplicação da norma do apuramento das circunstâncias do caso relevantes para a sua aplicação.
O aplicador tem de fazer um vaivém entre a norma o caso, o qual se vem traduzir quer numa adaptação da norma às circunstâncias do caso quer num enriquecimento do conteúdo dos conceitos a que recorre a previsão normativa.
Tradicionalmente a qualificação é encarada segundo um esquema subsuntivo, baseado na lógica formal, o silogismo de subsunção.
Assim, em sentido amplo, o problema da qualificação envolve três momentos.
No primeiro momento estabelece-se a premissa maior, que é a previsão da norma de conflitos. O estabelecimento desta premissa envolve a interpretação da proposição jurídica, por forma a determinar a previsão normativa, mediante um enunciado das suas notas conceptuais.
No segundo momento estabelece-se a premissa menor, por meio de uma delimitação do objecto da remissão, isto é, da determinação das situações da vida que se vão subsumir. Esta delimitação é feita tendo em atenção notas características jurídicas, envolvendo pois uma caracterização das situações da vida.
O terceiro momento é a subsunção, traduzindo-se na recondução da matéria delimitada na previsão normativa. Corresponde à qualificação em sentido estrito.
Relativamente a este esquema subsuntivo cabe fazer duas advertências. Primeiro, tende hoje a admitir-se que a maioria dos casos a interpretação – aplicação não poderá ser reconduzida exclusivamente a operações lógico – formais. Frequentemente será necessária uma valoração.
A segunda advertência é a seguinte: o esquema subsuntivo apresentado não é um esquema para a resolução de hipóteses, serve apenas para a compreensão das várias operações incluídas na qualificação em sentido amplo.

C) Interpretação dos conceitos que delimitam o objecto da remissão

No CC o legislador optou por utilizar na previsão das normas de conflitos conceitos técnico – jurídicos que se reportam a categorias de situações jurídicas definidas pelo seu conteúdo típico e por notas funcionais ou a questões parciais.
As obrigações e os direitos reais são situações jurídicas agrupadas segundo um critério estrutural, isto é, atendendo ao conteúdo da situação jurídica. Na obrigação o direito à prestação o e dever de prestar, com acento no aspecto passivo, na obrigação. No direito real a atribuição de uma coisa corpórea que, em princípio, todos devem respeitar.
Já o critério do agrupamento seguido relativamente às relações familiares e às sucessões parece ser outro. É um critério de pendor funcional e institucional. Nas sucessões a transmissão de direitos mortis causa, no Direito da Família as situações jurídicas que respeitam á instituição familiar.
A primeira questão que se coloca relativamente à interpretação dos conceitos técnico – jurídicos utilizados na previsão das normas de conflitos é a de saber a que Direito recorrer para o efeito.
A solução clássica consiste no recurso aos conceitos homólogos do Direito material do foro. Por exemplo, para determinar o conteúdo do conceito de obrigação, utilizando nas normas de conflitos, deveria recorrer-se à definição contida no art. 397º CC.
A posição adoptada com respeito às normas de conflitos de fonte interna é, seguindo Isabel de Magalhães Collaço, a de partir do Direito material do foro, retirando da sua análise notas para a determinação do conceito empregue pela norma de conflitos, mas tendo em conta as finalidades específicas prosseguidas pelo Direito de Conflitos.
Em suma, a interpretação das normas de conflitos de fonte interna é ancorada no Direito material do foro, mas autónoma.

D) Delimitação do objecto da remissão

Coloca-se agora a questão de saber como delimitamos as situações da vida que se hão-se reconduzir aos conceitos interpretados nos termos atrás expostos.
Já sabemos que o objecto da norma de conflitos são situações da vida ou aspectos destas situações, mas para a sua delimitação, a previsão das normas de conflitos utiliza conceitos técnico – jurídicos que atendem ao conteúdo jurídico típico e (ou) a critérios funcionais.
O objecto da remissão é um concretum, uma situação da vida ou um seu aspecto.
Não pode, por exemplo, dizer-se que o direito do arrendatário, em abstracto, se qualifica como direito real ou como direito de crédito. Face a certos sistemas o arrendamento é um instituto real, noutros um instituto predominantemente obrigacional, noutros ainda tem carácter misto.
Assim, por exemplo, pode dizer-se que certa relação da vida, caracterizada face ao Direito X como relação de arrendamento com determinado regime, se reconduz à norma de conflitos do art. 46º, ou às normas de conflitos da Convenção de Roma, ou que diferentes aspectos da relação caem sob o império de cada uma destas normas de conflitos.
A que sistema pedir a caracterização da situação da vida? São possíveis duas respostas fundamentais:
1) ao direito material do foro;
2) ao Direito material da lex causae, isto é, da lei competente
É preferível a caracterização lege causae.

E) Qualificação em sentido estrito

No terceiro momento – qualificação em sentido estrito – trata-se de reconduzir a matéria, o concretum caracterizado juridicamente nos termos anteriormente expostos, ao conceito empregue na previsão da norma de conflitos.
Esta operação tem uma vertente positiva e uma vertente negativa. Por um lado, a recondução da matéria ao conceito utilizado na previsão da norma de conflitos, que desencadeia a aplicação desta norma. Por outro lado, a não recondução da matéria aos conceitos utilizados na previsão de outras normas de conflitos, que determina o seu afastamento. Isto sem prejuízo da possibilidade de concursos de normas de conflitos, adiante examinados.
Entre Direitos “vizinhos”, isto é, sistemas jurídicos pertencentes à mesma família de Direitos, pode presumir-se a equivalência de qualificações.
Mas atenção: é uma presunção que pode e deve ser ilidida sempre que perante o conteúdo e função do instituto jurídico estrangeiro se imponha uma qualificação diferente perante o Direito de Conflitos português.
Em suma , embora o objecto da qualificação, as situações da vida ou aspectos parcelares, tenha de ser caracterizado à face da lei ou leis potencialmente aplicáveis, a última palavra sobre a qualificação do objecto deve ser proferida segundo o critério de qualificação do sistema a que pertencem as normas de conflitos em jogo.
Como o Direito de Conflitos aplicável é, em primeira linha, o Direito de Conflitos de foro, o critério de qualificação, é, em primeira linha, o critério de qualificação do foro.
Mas nos casos em que haja aplicação do Direito de Conflitos estrangeiro, o critério de qualificação há-se ser definido perante o respectivo sistema de Direito de Conflitos.
Quando as normas de conflitos em presença forem de fonte supraestadual, maxime convencional, o critério de qualificação deve fundar-se, em primeira linha, na estrutura e finalidades do Direito de Conflitos convencional.
Embora a caracterização seja feita lege causae, a qualificação é feita lege fori, rectius segundo o sistema de Direito de Conflitos a que pertencem as normas de conflitos em presença.

F) Especialidades das normas de conflitos ad hoc e das normas de remissão condicionada

A norma de conflitos ad hoc tem uma característica estrutural própria: não carece de delimitar ela própria a categoria de situações jurídicas ou a questões parcial a que se reporta, visto que só actua em função de uma determinada norma ou conjunto de normas materiais. A norma de conflitos ad hoc tem por objecto as situações ou aspectos de situações susceptíveis de serem disciplinadas pela norma ou conjunto de normas materiais a que está indissociavelmente ligada.
Não se coloca, portanto, um problema específico de qualificação no plano do DIP.
Passe-se agora às normas de remissão condicionada. Para operar a remissão condicionada tem, em princípio de se encontrar uma situação da vida ou um aspecto de uma situação da vida, juridicamente caracterizada, que seja reconduzível à previsão da norma.
Se houver uma condição adicional relativa ao resultado material, esta condição integra a previsão da norma, e, por conseguinte, a previsão não se verifica se no Direito estrangeiro não se verificar o resultado ou não existirem determinadas normas.
Todavia, pode acontecer que na previsão da norma de remissão condicionada não se encontre outro conceito delimitador do objecto da remissão que não seja o conceito relativo à condição material da remissão.

● Dificuldades suscitadas pelo fraccionamento conflitual das situações da vida. Delimitação

Já anteriormente, ao tratar da estrutura geral da norma de conflitos, me referi ao dépeçage, ao fraccionamento conflitual das situações da vida.
Este fraccionamento suscita vários tipos de problemas. Cuidando, por agora, apenas daqueles problemas que concernem directamente à qualificação, temos, por um lado, as dificuldades que suscita a delimitação dos aspectos que são abrangidos por uma e outra das normas de conflitos em jogo, e, por outro, o do concurso e falta de normas aplicáveis.
O problema da delimitação surge quando as situações, com o conteúdo que lhes é atribuído pelas leis em presença, têm carácter misto, pondo em jogo mais que uma norma de conflitos que se reporta a categorias de situações jurídicas. Por exemplo, um contrato de compra e venda que gera obrigações e vai orientado à produção de efeitos reais.
As questões jurídicas suscitadas por diferentes aspectos de uma mesma situação da vida são designadas questões parciais. A delimitação vem a traduzir-se na recondução das questões parciais a uma ou outra das normas de conflitos aplicáveis.
Em muitos casos não se pode contar com uma indicação do legislador. Por exemplo, o problema da delimitação tem de ser resolvido pelo intérprete com respeito a questões como a transferência da propriedade e a passagem do risco na compra e venda.
Podemos distinguir entre um núcleo ou conteúdo mínimo determinado do conceito utilizado para delimitar o objecto da remissão, e zonas cinzentas ou periféricas.
O núcleo do conceito abrange o conjunto de questões jurídicas que são indubitavelmente abrangidas pela previsão da norma, razão por que não suscitam dificuldades de delimitação.
Já as questões jurídicas que caem na zona periférica suscitam um problema específico de interpretação dos conceitos que delimitam o objecto da remissão das normas de conflitos em jogo.
Um segundo tipo de problemas decorre de uma combinação do fraccionamento com valorações contraditórias dos mesmos aspectos das situações da vida ou do recurso a meios técnico – jurídicos diferentes para tutelar valores substancialmente idênticos por parte das leis em presença.
Da acção combinada destes factores vai resultar que, pelo menos em primeira linha, nos possam surgir, como simultaneamente aplicáveis aos mesmos aspectos de uma situação da vida, duas ou mais leis, por força de duas ou mais normas de conflitos, ou que, ao contrário não surjam como aplicáveis quaisquer normas das leis em presença. Adiante trataremos destes problemas de concurso e de falta de normas aplicáveis.

● Exegese do art. 15º CC

Segundo o art. 15º CC “A competência atribuída a uma lei abrange somente as normas que, pelo seu conteúdo e pela função que têm nessa lei, integram o regime do instituto visado na regra de conflitos”.
Este preceito só faz alusão ao primeiro momento – interpretação dos conceitos que delimitam o objecto da remissão – quando se refere ao “regime do instituto visado na regra de conflitos”.
“Instituto” é um termo pouco feliz, porque grande parte dos conceitos que delimitam o objecto da remissão não se reportam a institutos – por exemplo, capacidade, forma, relações entre cônjuges e relações entre pais e filhos. “Instituto” tem se ser entendido como referindo qualquer uma das categorias normativas utilizadas para delimitar o objecto da remissão.
Quanto à delimitação do objecto da remissão o art. 15º já contém uma indicação importante: manda atender ao conteúdo das normas aplicáveis e à função que têm no sistema a que pertencem.
Aponta-se aqui claramente no sentido de uma caracterização lege causae.
A qualificação em sentido estrito é indirectamente visada no início do preceito: “A competência atribuída a uma lei abrange somente”.
Já sabemos que não podem ser reconduzidas à previsão de uma norma de conflitos situações da vida que, com a relevância jurídica que lhes seja atribuída pela lei para que aponta o respectivo elemento de conexão, não sejam reconduzíveis ao conceitos que delimita o objecto da norma.
A letra do art. 15º parece sugerir que o objecto da qualificação são normas, e não situações da vida.
A formulação dada ao art. 15º deve antes ser entendida à luz da correlação entre qualificação e estatuição da norma de conflitos. A determinação do sentido e alcance do conceito utilizado na previsão da norma e a delimitação do objecto da remissão (que ocorrem nos dois primeiros momentos da qualificação), pré – determinam o alcance jurídico – material da remissão (que integra a estatuição da norma de conflitos).

Capítulo XII – Problemas Especiais de Interpretação e Aplicação do Direito de Conflitos

● Razão de ordem. A adaptação

A) Generalidades

A missão do DIP de realizar a justiça nas relações transnacionais não termina, porém, com a designação da lei competente.
O método a seguir na interpretação e aplicação dos conceitos que delimitam o objecto da remissão foi, em geral, estudado no capítulo anterior. Os problemas especiais que agora examinarei também estão intimamente relacionados com a estrutura e os fins do sistema de Direito de Conflitos.
De entre estes problemas especiais salientam-se a questão prévia, o concurso e a falta de normas aplicáveis, a substituição e a transposição.
Com frequência trata-se separadamente dos ditos “conflitos de qualificação”, a propósito da qualificação, e da adaptação e questão prévia. A autonomia da substituição e da transposição relativamente á adaptação é discutida. Os autores que aceitam esta autonomia fazem diferentes agrupamentos de casos.
Desde logo, procedo e uma diferente arrumação de matérias, que tem por critério a natureza dos problemas colocados. Os ditos “conflitos de qualificações” são problemas especiais de interpretação e aplicação do direito de conflitos e, por conseguinte, serão tratados neste capítulo. Em contrapartida, pelas razões que apresentarei em seguida, não autonomizarei a adaptação enquanto problema especial de interpretação e aplicação do Direito de Conflitos.
B) A adaptação

O termo “adaptação” pode ser utilizado em duas acepções distintas: adaptação – problema e adaptação – solução.
O termo começa por ser aplicado a determinados casos em que a aplicação de ditos direitos materiais competentes a uma mesma situação internacional origina dificuldades, que são solucionadas por meio de um ajustamento das normas em presença.
Por exemplo, o art. 26º/2 CC. Suponha-se que morrem, num acidente de viação, um francês e a sua filha súbdita do Reino Unido domiciliada em Inglaterra. Não é possível determinar qual dos dois faleceu primeiro.
O pai deixou testamento em que designa a filha como herdeira universal caso lhe sobrevivesse, nomeando um amigo como herdeiro substituto.
A filha tinha feito testamento idêntico com relação ao pai e a uma miga.
Quer o amigo do pai quer a amiga da filha reclamam as duas heranças.
O Direito francês estabelece uma presunção de sobrevivência da filha e o Direito inglês uma presunção de sobrevivência do pai.
Há aqui uma incompatibilidade que resulta do chamamento de leis diferentes pela norma do art. 26º a reger o termo da personalidade jurídica de cada um deles.
O art. 26º/2 CC remete para o art. 68º/2 CC que estabelece uma presunção de comoriência, isto é, de falecimento simultâneo. Daí resulta que nem a filha herda do pai nem o pai da filha. A herança da filha vai para a amiga e a herança do pai vai para o amigo.
A adaptação – problema vai assim abranger problemas de conjugação de estatutos que têm de ser resolvidos à luz da ideia de unidade do sistema jurídico.
Sucede, porém, que há outros problemas cuja solução passa por uma modelação da solução material.
Primeiro, como consequência da intervenção da ordem jurídica internacional, podemos ter de introduzir ajustamentos na aplicação da lei estrangeira, como adiante veremos.
Segundo, na resolução de problemas de sucessão de estatutos podemos ter de ajustar soluções materiais; trata-se geralmente de casos de transposição que têm de ser solucionados por meio de adaptação.
Terceiro, pode suceder excepcionalmente que o problema jurídico – material seja alterado essencialmente por circunstâncias decorrentes da internacionalidade da situação. Isto pode justificar um ajustamento do critério de decisão à especificidade do caso.
Portanto a adaptação – solução tem lugar em casos que não são adaptação – problema.
A tipologia de problemas especiais de interpretação e aplicação do Direito de Conflitos que se segue não é exaustiva. Há designadamente problemas de conjugação de estatutos que não se podem configurar como casos de concurso de normas de conflitos, falta de normas aplicáveis, substituição ou transmissão.

● Questão prévia

Na linha do entendimento tradicional, entendo que são quatro os pressupostos de um problema de questão prévia.
Primeiro, na previsão da norma material aplicável por força de uma norma de conflitos integra-se um pressuposto cuja verificação constitui matéria abrangida por outra norma de conflitos.
Por exemplo, sucessão legal de um suíço que falece com último domicílio na Suiça e deixando bens em Portugal. A questão principal é a determinação dos sucessíveis e das suas quotas hereditárias. O art. 62º CC remete para a lei Suiça. O art. 457º CC suíço estabelece como primeira classe de sucessíveis legais os descendentes do autos da sucessão. Pode discutir-se se dada pessoa é ou não filhos do autor da sucessão. É uma questão prévia relativa à filiação.
Segundo, para reger a questão principal – no exemplo dado a sucessão – é competente uma lei estrangeira – no exemplo a Suiça.
Terceiro, há uma divergência entre a norma de conflitos portuguesa aplicável á questão prévia e a norma de conflitos da lei reguladora da questão principal aplicável à questão prévia.
Quarto, a divergência entre o DIP da lex fori e o da lex causae, isto é, da lei aplicável á questão principal, leva à apreciação da questão prévia segundo leis diferentes que dão solução diferente à questão prévia.
Assim caracterizado o problema tem fundamentalmente duas soluções:
i) aplicar a norma de conflitos do foro para determinar o direito aplicável à questão prévia – tese da conexão autónoma;
ii) aplicar a norma de conflitos da lei reguladora da questão principal para determinar o direito aplicável à questão prévia – tese da conexão subordinada.

A tese da conexão autónoma nem considera existir bem um problema, sendo óbvio que as normas de conflitos de um sistema se aplicam quer a questão se suscite como principal ou como prévia.
Para a tese da conexão subordinada não faria sentido dar à questão prévia uma solução diferente da dada pelo DIP da lei reguladora da questão principal.
Entretanto, tem ganho crescente importância uma terceira orientação segundo a qual problema da questão prévia não deve ser resolvido mediante um critério geral, mas em função da questão jurídica ou da norma de conflitos em causa.
A favor da tese da conexão subordinada são invocados diversos argumentos. O argumento mais importante é a harmonia internacional de soluções.
Podem contudo ser invocados três argumentos contra a tese da conexão subordinada:
1) o princípio da harmonia interna – se aplicar-mos às mesmas situações da vida leis diferentes, consoante tais situações forem apreciadas a título principal ou a título prejudicial, chegaremos frequentemente a soluções contraditórias;
2) a certeza jurídica sobre a lei aplicável
3) A própria estrutura de sistemas de Direito de Conflitos como o português, o modo como espelham o carácter analítico do DIP, ao submeterem diversos aspectos das situações a diferentes normas de conflitos, parece não ser compatível com uma regra geral de conexão subordinada.

Mesmo que a tese da conexão subordinada fosse de preferir de iure condendo, que não é a minha opinião, cumpriria reconhecer que não é compatível com o direito vigente.
O exposto não exclui que, excepcionalmente, possa ser de seguir a tese da conexão subordinada. Isto verifica-se perante o Direito vigente, em certas matérias e que vigora Direito de Conflitos unificado.
Portanto, as excepções não desvirtuam a regra segundo a qual da circunstância de uma questão se suscitar a título preliminar não decorre em tratamento conflitual diferente.

● Concurso e falta de normas aplicáveis

Os problemas de concurso e de falta de normas aplicáveis decorrem do fraccionamento de situações da vida pelo Direito de Conflitos. Em princípio, este fraccionamento traduz-se na sujeição de aspectos diferentes das situações a diversas normas de conflitos.
No entanto, em consequência de diferentes valorações dos mesmos aspectos das situações da vida ou do recurso a meios técnico – jurídicos em presença, podem surgir como simultaneamente aplicáveis ao mesmo aspecto de uma situação da vida, duas ou mais leis, por força de duas ou mais normas de conflitos.
Dos mesmos factores pode resultar que não surjam como aplicáveis quaisquer normas das leis em presença. Fala-se então, de uma falta de normas aplicáveis.
O concurso de normas de conflitos pode apresentar três configurações diferentes:
1) numa primeira configuração, existe uma contradição normativa entre as normas materiais das leis em presença, por estas desencadearem consequências jurídicas incompatíveis entre si.
2) num segundo caso, as consequências jurídicas das normas materiais das leis em presença são compatíveis entre si, mas a sua aplicação simultânea constituiria uma contradição valorativa;
3) na terceira hipótese nada obsta á aplicação simultânea das normas materiais das leis em presença.
Só nos dois primeiros casos há um problema especial de interpretação e aplicação do Direito de Conflitos que carece de resolução.
São vários os critérios para resolver os casos de pluralidade de normas aplicáveis:
i) primeiro, a interpretação das normas de conflitos em presença pode levar a concluir que só uma delas deve ser aplicada (casos de concurso aparente de normas de conflitos)
ii) quando isto não se verifique, deve procurar-se estabelecer uma hierarquização entre as normas de conflitos em jogo, com base na sua interpretação
iii) em alguns casos pode ser necessário combinar uma hierarquização com uma adaptação das normas de conflitos.

Passe-se agora aos casos de falta de normas aplicáveis. São casos em que a situação é juridicamente relevante perante duas ou mais leis em presença, mas, em virtude, de valorações contraditórias ou do recurso a meios técnico – jurídicos diferente, não surgem como aplicáveis quaisquer normas materiais.
A solução dos problemas de falta de normas aplicáveis passa, em primeira linha por uma adaptação ao nível do Direito de Conflitos.

● Substituição e transposição

A substituição e a transposição tem algo de comum com a adaptação – problema: são problemas que surgem quando uma situação da vida suscita questões que devem ser apreciadas segundo Direitos materiais diferentes.
Na substituição o preenchimento de um elemento da previsão da norma material de uma ordem jurídica deve ser apreciado segundo uma ordem jurídica diferente. Parte-se da primeira ordem jurídica para a segunda. O conteúdo jurídico conformado pela segunda ordem jurídica é um mero pressuposto de aplicação da norma da primeira ordem jurídica (norma pressuponente). Entre estas ordens jurídicas estabelece-se um nexo de prejudicialidade ou pressuposição.
Entendo que se trata de reconduzir uma situação da vida, ou um seu aspecto, com o conteúdo jurídico que lhe é atribuído por uma ordem jurídica. Sublinha-se, assim, que não é um problema de equivalência de institutos jurídicos, mas de qualificação jurídico – material de uma situação concreta.
O problema da substituição tem em primeira linha de ser resolvido à luz da interpretação da norma material pressuponente. É esta interpretação que fornece as notas conceptuais que a situação jurídica conformada por outra ordem jurídica deve preencher para poder ser reconduzida à previsão da norma pressuponente.
Se a interpretação da norma pressuponente não fornecer indicações em sentido contrário, a substituição envolve essencialmente um raciocínio de analogia. Quando um elemento da previsão da norma pressuponente se reporta a uma situação jurídica, tem em vista, em princípio, uma situação conformada por outras normas materiais da mesma ordem jurídica. Quando, porém, a situação pressuposta for submetida pelo Direito de Conflitos a uma ordem jurídica diferente, torna-se necessário examinar se a situação conformada por esta ordem jurídica é suficientemente análoga com uma situação conformada pela ordem jurídica da norma pressuponente para que se justifique a mesma valoração.
Em princípio, o Direito de Conflitos do foro deve respeitar as soluções em matéria de substituição seguidas na ordem jurídica da norma pressuponente.
Na transposição postula-se que o conteúdo jurídico que uma situação tem à face de determinado Direito, deve, tanto quanto possível, ser respeitado à face de outra ordem jurídica, designadamente quando esta for chamada a reger a produção de certos efeitos. Parte-se da ordem jurídica que dá conteúdo jurídico à situação e não da ordem jurídica que rege a produção dos efeitos. Entre as duas ordens jurídicas estabelece-se, por isso, uma relação de preordenação.
A situação é primariamente conformada por uma ordem jurídica diferente daquela que vai disciplinar a produção de certos efeitos. A situação não releva somente enquanto pressupostos de produção de efeitos perante o “estatuto dos efeitos”, apresenta-se como uma situação pré – conformada e preordenada à produção de certos efeitos.
A opção pela óptica de substituição ou de transposição depende do DIP do foro, da interpretação das normas de conflitos em presença.

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