Objecto e função das normas de conflitos bilaterais
A) Generalidades. Normas de conflitos bilaterais e unilaterais
O objecto da norma é a realidade que a norma regula. Por função da norma pode entender-se o fim que prossegue, a sua teleologia. A função que agora se tem em vista é a função jurídica ou técnico – jurídica: o problema jurídico que a norma tem por missão resolver e o processo por que o resolve.
Para examinar o objecto e a função das normas de conflitos importa distinguir entre normas bilaterais e normas unilaterais. Esta classificação de normas de conflitos atende aos sistemas jurídicos que são destinatários da remissão.
As normas unilaterais só determinam a aplicação do Direito do próprio foro. Um exemplo:
1) O art. 3º/3 do CC fr determina que “as leis francesas sobre estado e capacidade aplicam-se aos franceses, mesmo que residem no estrangeiro”.
As normas bilaterais, ou plurilaterais, tanto remetem para o Direito do foro como para o Direito estrangeiro.
È o que se verifica, por forma geral, com as normas de conflitos contidas no Código Civil, embora também ai se encontrem manifestações de unilateralismo.
B) Posição adoptada. Objecto da norma de conflitos. Teleologia da norma de conflitos. Função técnico – jurídica da norma de conflitos em geral
A construção do nacionalismo italiano sobre o objecto e a função da norma de conflitos constitui uma primeira resposta á realidade de um DIP que apesar de ser principalmente de fonte estadual tem de remeter tanto para o Direito do foro como para o Direito estrangeiro.
Parece certo que na aplicação ou não aplicação do Direito estrangeiro não está, em princípio, em causa um problema de respeito da soberania estrangeira ou de ofensa da soberania estrangeira. Em primeira linha trata-se antes de regular uma situação “privada”, mediante a determinação da ordem jurídica que vai fornecer a disciplina material aplicável.
Não se concorda com a escola nacionalista italiana quando encara a norma de conflitos como uma norma de incorporação do Direito estrangeiro, que só se aplica às situações que são submetidas ao Direito estrangeiro.
Desde logo isto levaria a negar a existência das normas de conflitos que só remetem para o Direito do foro, como o são as normas unilaterais.
Perante um sistema de Direito de Conflitos de base bilateral o Direito material do foro surge colocado, em princípio, no mesmo plano que os Direitos materiais estrangeiros.
O sistema de Direito de Conflitos de base bilateral, ao admitir que as normas de conflitos remetem a disciplina de determinados categorias de situações para uma ordem jurídica estrangeira reconhece implicitamente que as ordens jurídicas estrangeiras existem autonomamente, com uma dada esfera espacial de vigência, independentemente da remissão operada pela norma de conflitos do foro.
C) A dupla função técnico – jurídica das normas de conflitos bilaterais
As normas de conflitos, como normas de regulação indirecta, operam através da remissão para um Direito. As normas de Conflitos que integram o sistema de Direito de Conflitos remetem, geralmente, para uma ordem jurídica nacional.
Através da “atribuição de competência e esta ordem local” a norma de conflitos contribui para reconhecer determinada esfera de aplicação no espaço quer ao Direito do foro quer ao Direito estrangeiro.
Por exemplo, da norma de conflitos que submete a sucessão por morte à lei da última nacionalidade do de cuius decorre que, na perspectiva do nosso Direito de Conflitos, o direito sucessório português se aplica á sucessão dos portugueses e o direito sucessório italiano se aplica á sucessão dos italianos.
Daí que Isabel de Magalhães Collaço, bem como parte da doutrina italiana, fale de dupla função da norma de conflitos.
Em meu entender a dupla função técnico – jurídica das normas de conflitos bilaterais consiste no seguinte: por um lado a norma de conflitos determina o Direito aplicável; por outro, a norma de conflitos, quando remete para Direito estrangeiro ou extra – estadual, confere-lhe um título de aplicação na ordem interna.
A remissão operada pela norma de conflitos é não recipienda. A proposição estrangeira ou extra – estadual não se converte num elemento da ordem jurídica do foro enquanto critério de conduta ou de decisão. O Direito estrangeiro ou extra – estadual é aplicado enquanto Direito estrangeiro ou extra – estadual. Por exemplo, as normas francesas não se tornam portuguesas pelo facto de serem aplicadas por tribunais portugueses.
● Objecto e função das normas de conflitos unilaterais. Bilateralização.
A) Bilateralismo e unilateralismo
Sublinharam que não há um sistema universal de Direito de Conflitos mas uma pluralidade de Direito de Conflitos de fonte interna diferentes entre si.
Um Estado não pode, por meio das sua normas de conflitos, delimitar a competência legislativa de outros Estados.
As normas unilaterais podem ser gerais ou especiais.
As normas unilaterais gerais referem-se normalmente a estados ou categorias de relações jurídicas, como é o caso do art. 3º/3 CC fr.
As normas unilaterais especiais encontram-se numa relação de especialidade com outras normas de conflitos, bilaterais ou unilaterais.
As normas unilaterais especiais podem assumir, quanto á sua previsão, três modalidades:
1) temos as normas unilaterais que se reportam a estados ou categorias de relações jurídicas, embora se encontrem numa relação de especialidade com outras normas de conflitos que se reportam a categorias normativas mais amplas;
2) a segunda modalidade é a das normas unilaterais que se reportam a questões parciais que, em princípio, estariam englobadas no domínio de aplicação de outras normas de conflitos;
3) o terceiro tipo de norma unilateral é a que se reporta a uma norma ou lei material individualizada. Já sabemos que esta modalidade de norma unilateral pode ser designada como norma ad hoc.
As normas de conflitos ad hoc têm normalmente uma relação íntima e directa com a norma ou lei material a que se reportam.
A melhor perspectiva é a que encara os elementos unilaterais como complemento necessário do sistema de Direito de Conflitos de base bilateral. Por certo que certas normas de conexão ad hoc ligadas a normas ou leis individualizadas podem apresentar-se como “estranhas ao sistema” e como limite ao funcionamento do sistema de Direito de Conflitos. Mas deve favorecer-se o seu enquadramento sistemático, mediante a sua generalização e bilateralização e tendo em conta as finalidades gerais do sistema de DIP.
B) As normas “autolimitadas”
Já sabemos que se diz “autolimitada” aquela norma material cuja esfera de aplicação no espaço não corresponde á que resultaria da actuação do sistema de Direito de Conflitos. E que isto pode resultar de esta norma material ser acompanhada de uma norma de conflitos unilateral ad hoc ou de uma valoração casuística, feita pelo intérprete face ao conjunto das circunstâncias do caso.
As normas “autolimitadas” podem ser divididas em quatro categorias:
1) Em primeiro lugar surgem as normas que tem uma esfera de aplicação no espaço mais vasta de que aquela que decorreria do Direito de Conflitos geral (norma de tipo I). Estas normas são aplicáveis sempre que o Direito do foro é chamado pelo Direito de Conflitos geral e ainda noutros casos.
2) Uma segunda categoria de normas “autolimitadas” tem uma esfera de aplicação no espaço que só em parte coincide com aquela que decorreria do Direito de Conflitos geral (norma de tipo II). Estas normas “autolimitadas” aplicam-se em alguns casos em que oDireito do foro é chamado pelo Direito de Conflitos geral, mas não em todos, e também se aplicam noutros casos em que o Direito do foro não é competente.
3) A terceira categoria de normas “autolimitadas” são as que têm na esfera de aplicação no espaço mais restrita do que aquela que decorreria do Direito de Conflitos geral (norma de tipo III).
4) O quarto tipo são as que têm uma esfera de aplicação no espaço inteiramente diferente da que decorreria do Direito de Conflitos geral (norma de tipo IV).
As duas primeiras categorias de normas “autolimitadas” são as mais importantes na prática.
Entendo que as normas de aplicação necessária não são uma modalidade de normas “autolimitadas”, mas um modo de actuação de certas normas “autolimitadas”.
As normas “autolimitadas” susceptíveis de aplicação necessária não constituem pois uma alternativa ao processo conflitual ou de regulação indirecta, mas uma manifestação de um certo tipo de unilateralismo, que coloca o problema do Direito aplicável em função de normas individualizadas.
Se a aplicação da norma material do foro depende de uma norma de conflitos ad hoc ou de uma valoração conflitual casuística, esta norma nunca é, por certo, imediatamente aplicável. Trata-se de um processo de regulação indirecta. A diferença relativamente á regulação por via do sistema de Direito de Conflitos é técnica. Resulta da substituição deste sistema por normas de conflitos ad hoc ou por uma valoração conflitual casuística.
Por esta razão prefiro a expressão “aplicação necessária” e “aplicação imediata”.
Se o legislador formular expressamente uma norma de conflitos ad hoc com respeito a determinada regra ou lei material o problema é de fácil resolução. A norma ad hoc, como norma de conflitos especial que é, prevalece sobre o Direito de Conflitos geral.
Na falta de solução expressa, são três as vias que se abrem para a qualificação de uma regra material como sendo “autolimitada”.
Primeiro, a inferência de uma norma de conflitos ad hoc implícita. Segundo, a criação de uma solução conflitual ad hoc á luz da teoria das lacunas da lei. Terceiro, a vigência de uma cláusula geral que permite colocar o problema da aplicabilidade da norma material em função das circunstâncias do caso concreto.
C) As funções das normas de conflitos unilaterais do Direito vigente
As normas de conflitos unilaterais também têm por função realizar um processo de regulação indirecta de situações transnacionais. Mas realizam esta função exclusivamente por meio do chamamento do Direito do foro. Por conseguinte, não têm uma dupla função nem podem servir para conferir um título de aplicação ao Direito estrangeiro.
No Direito português não vigoram normas unilaterais gerais de DIP.
A maior parte das normas unilaterais especiais vigentes na ordem jurídica portuguesa são, porém, normas de conflitos ad hoc.
Decorre da tipologia de normas “autolimitadas” atrás apresentada que as normas unilaterais ad hoc que se reportam a normas de Direito material comum tanto podem afastar o Direito de Conflitos geral como actuar conjuntamente com ele, estendendo ou restringindo a esfera de aplicação no espaço que resulta deste Direito de Conflitos.
D) O problema da bilateralização das normas unilaterais. A generalização de normas unilaterais ad hoc
Já se assinalou que perante as lacunas que acompanham as normas unilaterais os tribunais procederam geralmente à sua bilateralização. Nem sempre, porém, esta bilateralização é possível.
Tem-se entendido que a bilateralização só é possível quando a regra unilateral valha como revelação de “um princípio geral”, isto é, como conexão adequada à situação ou questão parcial em causa.
Inclino-me a pensar que o problema tem de ser colocado em dois níveis diferentes.
Num primeiro momento coloca-se a questão de saber se existe uma lacuna.
Para responder a esta questão é importante distinguir os diferentes tipos de normas unilaterais.
Quando, relativamente a certos estados ou categorias de relações jurídicas, um sistema jurídico não dispõe de normas bilaterais, mas tão-somente de normas unilaterais, surge uma lacuna sempre que não seja aplicável o Direito do foro.
A questão pode oferecer mais dúvidas quando tais normas de conflitos unilaterais, embora se refiram a estados ou categorias de relações jurídicas, tenham carácter especial relativamente a normas de conflitos bilaterais. Aí cabe questionar, quando não é aplicável, ao estado ou á relação jurídica visados na norma unilateral, o Direito do foro, se há uma lacuna ou se deve simplesmente aplicar-se a norma de conflitos geral.
Há, por conseguinte, uma lacuna, que deve ser suprida mediante a bilateralização da norma.
Para determinar se há lacuna, uma falha no plano legislativo, é legítimo tomar em conta todas as valorações e princípios do sistema.
As dúvidas sobre a existência de uma lacuna, uma também são prementes quando as normas de conflitos unilaterais se refiram a questões parciais que, em princípio, estariam englobadas no domínio de aplicação de normas de conflitos bilaterais. O mesmo se diga das normas uinlaterais ad hoc, que se reportam a normas individualizadas ou conjuntos determinados de normas.
O segundo momento é o da integração da lacuna. A considerar-se que existe uma falha no plano legislativo coloca-se a questão de saber se esta lacuna deve ser preenchida do mesmo modo que a suscitada pelas normas unilaterais gerais.
A resposta a esta questão também pode depender do tipo de norma unilateral em causa e das finalidades por ela prosseguidas.
No que toca às normas unilaterais ad hoc, que se reportam a normas materiais determinadas, parece que a bilateralização terá sempre de ser condicionada a existência no sistema designado de normas e regimes com o mesmo conteúdo e função, embora se possa não ver aí mais que uma concretização dos princípios gerais em matéria de qualificação.
Outra questão é a de saber se a “bilateralização” da norma de conflitos unilateral deve ser condicionada à dita “vontade de aplicação” de tais normas e regimes materiais estrangeiros por forma distinta da devolução.
Por estas razões, e também porque frequentemente há uma impregnação da norma unilateral ad hoc por preocupações materiais, parece defensável, de iure condendo, que a “bilateralização” desta norma se venha a traduzir na formulação de regras de remissão condicionada.
Perante a verificação de uma lacuna, as normas unilaterais são, em regra bilateralizáveis.
As normas unilaterais insusceptíveis de bilateralização podem ser designdas por normas de delimitação.
A bilateralização das normas unilaterais ad hoc envolve um processo mais amplo que poderemos designar por generalização.
A generalização compreende dois processos:
1) o “alargamento da previsão”, passando de uma norma ou lei individualizada para uma categoria de normas (ou de relações definidas pelo seu conteúdo jurídico típico);
2) a bilateralização.
Com efeito, a bilateralização de uma norma unilateral ad hoc pressupõe o “alargamento da previsão”.
E) Normas bilaterais imperfeitas
As normas bilaterais imperfeitas são as que, podendo determinar a aplicação tanto de Direito do foro como de Direito estrangeiro, limitam o seu objecto a certos casos que têm uma ligação especial com o Estado do foro, não fornecendo pois, directamente, a solução para as situações do mesmo tipo abstracto, mas em que falta a referida ligação.
No CC vigente é também o caso do art. 51º/1 e 2. O nº1 prevê o casamento de dois estrangeiros em Portugal. O nº2 o casamento de dois portugueses ou de um português e de um estrangeiro no estrangeiro. Fica de fora o casamento de dois estrangeiros, em país estrangeiro, perante os respectivos agentes diplomáticos ou consulares.
Estas normas também colocam a questão de saber se há uma lacuna. Parece que é possível aplicar analogicamente o art. 51º por forma a que dois estrangeiros possam casar num Estado estrangeiro diferente do da sua nacionalidade, perante os respectivos agentes diplomáticos ou consulares, segundo a sua lei nacional.
Mas não é possível formular uma norma bilateral perfeita, porque o art. 51º admite o casamento perante agentes diplomáticos ou consulares portugueses quando apenas um dos contraentes é português, ao passo que só admite o casamento perante agentes diplomáticos e consulares estrangeiros quando ambos os contraentes são estrangeiros.
● Normas de remissão condicionada e normas de reconhecimento
A) Normas de remissão condicionada
O CC contém numerosas normas de conflitos que operam uma remissão condicionada: arts. 28º/3, 31º/2, 36º/1 in fine, 45º/3, 47º e 65º/2.
Considero preferível o conceito mais restrito, segundo a qual é regra de remissão condicionada aquela que tem em conta a competência da lei estrangeira segundo o respectivo DIP:
A técnica de remissão condicionada parece justificar-se prrincipalmente de dois tipos de situações:
1) quando se admite um desvio excepcional á lei normalmente competente, que se só se justifica quando a situação esteja ligada por determinado elemento de conexão a outro Estado e a ordem jurídica deste Estado reclame aplicação; por exemplo, quando os interessados devem poder confiar na aplicabilidade desta ordem jurídica ou quando esta ordem jurídica esteja em posição privilegiada para impor o seu ponto de vista sobre a solução do caso (como é o caso do art. 47º CC);
2) no que diz respeito á remissão para normas ou regimes imperativos contidos numa ordem jurídica que não é a primariamente competente para reger a situação.
B) Normas de reconhecimento
A expressão “norma de reconhecimento” é empregue em várias acepções. Hart utiliza-a no sentido de norma sobre as fontes de Direito.
Noutro sentido, para designar certas normas de DIP que não são simples normas de conflitos.
A norma de reconhecimento estabelece que determinado resultado material ou que efeitos jurídicos de uma determinada categoria se produzirão na ordem jurídica do foro caso se verifiquem noutro Direito.
È o caso das normas sobre o reconhecimento de efeitos de sentenças estrangeiras.
A norma de reconhecimento é uma norma de remissão porque determina a aplicação do Direito estrangeiro ou extra – estadual á produção do efeito.
A norma de reconhecimento distingue-se das normas de remissão gerais porque se reporta a um resultado material ou a uma categoria de efeitos jurídicos e porque conserva um maior controlo sobre a solução material.
A norma de reconhecimento pode ou não ser uma norma de conexão. As normas de reconhecimento de efeitos de actos públicos estrangeiros serão normas de conexão se condicionarem o reconhecimento à existência de uma conexão adequada entre o Estado de origem da decisão e a situação.
As normas de reconhecimento podem ter por objecto efeitos desencadeados por um acto público estrangeiro constitutivo, modificativo ou extintivo ou outros efeitos que se produzem independentemente de acto público.
● O problema da relevância das normas imperativas estrangeiras
A) Identificação do problema
Já se assinalou que, no contexto da discussão sobre as norma “autolimitadas”, surgiu a questão de saber se e em que termos deverá ser dada relevância a normas “autolimitadas” de ordenamentos estrangeiros que não são os chamados pelo sistema de Direito de Conflitos a regular a questão (terceiros ordenamentos). O problema colocou-se especialmente com respeito aos contratos internacionais, quando o contrato viola normas imperativas de um terceiro ordenamento.
As normas imperativas estrangeiras só podem ser aplicadas na ordem jurídica local por força do título de aplicação que uma proposição vigente nesta ordem jurídica lhes conceda.
Cabe distinguir entre normas imperativas lex causae e normas imperativas de terceiros ordenamentos.
As normas imperativas lex causae são, em princípio, aplicáveis no quadro do título de aplicação conferido a essa lei pelas normas de conflitos gerais.
A dificuldade quanto á aplicação de normas imperativas da lex causae surge quando estas normas forem “autolimitadas”, excluindo a sua aplicação á situação que são chamadas a disciplinar.
Esta dificuldade deve resolver-se segundo duas regras:
1) primeiro, se a negação de aplicabilidade da norma não põe em causa a competência da ordem jurídica a que pertence a “autolimitação” deve ser respeitada;
2) segundo, se a negação de aplicabilidade da norma põe em causa a competência da ordem jurídica a que pertence a “autolimitação”só poderá relevar no quadro das regras sobre devolução.
Quanto ás normas imperativas de terceiros ordenamentos, coloca-se a questão de saber se a ordem jurídica local lhes confere um título de aplicação mediante proposições jurídicas especiais ou se, de outro modo, permite a sua tomada em consideração.
Se as normas imperativas do terceiro Estado forem aplicáveis a título de Direito regulador do contrato o art. 7º/1 da Convenção de Roma não lhes confere relevância. Isto exprime a tendência para encarar o problema de relevância de normas imperativas de terceiros Estados como uma das vertentes do tema das “normas de aplicação necessária”.
B) Principais teses sobre a relevância das normas imperativas estrangeiras
A doutrina tem duas teses fundamentais: a teoria do estatuo obrigacional e a teoria da conexão especial.
Segundo o entendimento tradicional, que corresponde á teoria do estatuto obrigacional, as normas imperativas estrangeiras só serão aplicadas quando integrem a lex causae. Normas de terceiros ordenamentos só poderão relevar enquanto pressupostos de facto de normas da lex causae, em termos que adiante se esclarecerão.
A dita teoria da conexão especial não corresponde a uma concepção unitária. Na formulação que lhe foi dada em primeiro lugar traduz-se numa cláusula geral segundo a qual serão aplicadas, além das normas jurídicas que pertençam ao estatuto obrigacional, as de qualquer outra ordem jurídica, dispostas a aplicar-se, desde que exista uma relação suficientemente estreita entre a ordem jurídica em causa e o contrato e tendo como limite a sua conformidade com a ordem pública do foro.
C) Posição adoptada de iure condendo
De iure condendo, dou preferência à criação de normas de remissão condicionada a certas categorias de normas imperativas vigentes em Estados que apresentam determinada conexão com a situação.
A remissão será condicionada á “disposição a aplicar-se” das normas em causa, quer se trate de normas susceptíveis que “reclamem aplicação” por força do respectivo sistema de Direito de Conflitos.
Frequentemente estas normas deverão estabelecer a aplicação cumulativa das normas imperativas do Estado que apresenta conexão especial com a situação com as normas imperativas da lex causae.
D) Posição adoptada de iure constituto
Não vigora na ordem jurídica portuguesa qualquer regra geral sobre a relevância de normas imperativas de terceiros ordenamentos.
Todavia o DIP português contém algumas regras relevantes em domínios específicos.
A mais importante é a que consta do art. 16º da Convenção de Haia sobre a Lei Aplicável aos Contratos de Mediação e a Representação.
Há ainda certas normas de remissão condicionada que permitem ter em conta a “vontade de aplicação” de normas estrangeiras – arts. 36º/1, 45º/3, 47º e 65º/2 CC.
Fora destes domínios específicos, a criação, pelo intérprete, de soluções conflituais especiais, que atribuem um título de aplicação a normas imperativas de terceiros Estados, pressupõe a revelação de uma lacuna oculta mediante interpretação restritiva ou redução teleológica das normas de conflitos gerais em causa. E deve obedecer aos critérios estabelecidos, na ordem jurídica portuguesa, para a sua integração.
E) Relevância de normas imperativas de terceiros Estados no quadro do direito material da lex causae.
Nos casos em que a ordem jurídica local não atribui um título de aplicação a normas imperativas de terceiros Estados, estas normas podem ainda ter relevância no quadro do direito material da lex causae.
A referência a esta tomada em consideração das normas imperativas de terceiros Estados no quadro do Direito material da lex causae.
Esta tomada em consideração verifica-se indubitavelmente nos casos em que a norma é considerada como um pressuposto de facto da aplicação de uma norma material da lex causae.
A hipótese de escola é a da relevância da norma proibitiva do país de execução do contrato como factor gerador de impossibilidade de cumprimento.
Quando o Direito português for chamado a reger o negócio jurídico, a violação de uma norma imperativa estrangeira só poderia constituir fundamento de nulidade por contrariedade à lei do objecto ou do fim do negócio, perante os arts. 280º e 281º CC, se a norma imperativa for violada.
A jurisprudência de diversos países tem evitado este resultado, entendendo que a invalidade do negócio cujo objecto seja contrário a normas imperativas de terceiros Estados decorre da contrariedade aos bons costumes.
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