terça-feira, 4 de janeiro de 2011

devolução ou reenvio

A) Identificação do problema

Quando a norma de conflitos portuguesa remete para uma ordem jurídica estrangeira pode suceder que esta ordem jurídica, por ter uma norma de conflitos idêntica à nossa, também considere aplicável o seu Direito material. Mas pode suceder igualmente que esta ordem jurídica, por ter uma norma de conflitos diferente da nossa, não se considere competente e remeta para outra lei. Surge então o problema da devolução.
O problema é o seguinte: devemos aplicar a lei designada, mesmo que este não se considere competente, ou devemos ter em conta o DIP da lei designada?
Será que esta referência se dirige directa e imediatamente ao Direito material da lei designada ou será que, diferentemente, esta referência pode a abranger o DIP da lei designada?
Quando a referência se dirige directa e imediatamente ao Direito material da lei designada dizemos que a referência é uma referência material.
È global a referência que tem em conta o DIP da lei designada.
São três os pressupostos de um problema de devolução:
i) que a norma de conflitos do foro remeta para uma lei estrangeira;
ii) que a remissão possa não ser entendida como uma referência material;
iii) que a lei estrangeira designada não se considere competente.

Este terceiro pressuposto verifica-se quando a norma de conflitos estrangeira utiliza um elemento de conexão diferente da norma de conflitos do foro ou quando, embora utilizando o mesmo elemento de conexão, seja interpretada por forma diferente.

B) Tipos de devolução

A devolução pode apresentar-se como um retorno de competência ou uma transmissão de competência.
No retorno de competência, ou reenvio de primeiro grau, o Direito de Conflitos estrangeiro remete a solução da questão para o Direito do foro.
Na formulação destas hipóteses de devolução designamos a lei do foro como L1, a lei designada como L2, a lei designada por L2 como L3 e assim sucessivamente.
Na transmissão de competência, ou reenvio de segundo grau, o Direito de Conflitos estrangeiro remete a solução da questão para outro ordenamento estrangeiro.
Podemos ter retorno indirecto quando L2 remete para L3 com referência global e L3, por sua vez, devolve para o Direito do foro.
Podemos ter transmissão em cadeia quando L2 remete para L3 e esta lei também não se considere competente, devolvendo para uma quarta lei.
Pode ainda configurar-se uma transmissão com retorno, quando, por exemplo, L3 remeta para L2.

● Critérios gerais de solução

A) Tese da referência material

Segundo esta tese a referência feita pela norma de conflitos é sempre e necessariamente entendida como uma referência material, isto é como uma remissão directa e imediata para o Direito material da lei designada.
Não interessa o Direito de Conflitos da lei designada.
A tese da referência material contrapõe-se a qualquer sistema de devolução, a qualquer sistema em que se tenha em conta o Direito de Conflitos estrangeiro, ainda que este Direito de Conflitos não seja sempre e necessariamente aplicado.
Encontra-se consagrada, em matéria de obrigações contratuais, no art. 15º da Convenção de Roma sobre a Lei Aplicável às Obrigações Contratuais.

B) Teoria da referência global

Segundo esta teoria, a remissão da norma de conflitos para uma ordem jurídica estrangeira abrange sempre e necessariamente o seu Direito de Conflitos.
Embora as normas de conflitos tenham por função designar qual o Direito material competente, quando remetem para uma ordem jurídica estrangeira a designação das normas materiais aplicáveis não é feita directa e imediatamente, é antes feita indirectamente, com a mediação do Direito de Conflitos da ordem jurídica estrangeira.

C) Teoria da devolução simples

Segundo esta teoria a remissão da norma de conflitos do foro abrange as normas de conflitos da ordem estrangeira, mas entende-se necessariamente a remissão operada pela norma de conflitos estrangeira como uma referência material.
A devolução simples surge historicamente ligada ao favorecimento da aplicação do Direito do foro. Em Portugal, parece que foi sempre aplicada em casos de retorno.
Com efeito, a devolução simples leva a aceitar o retorno directo mesmo que L2 não aplique L1. Por exemplo, na situação de retorno directo entre dois sistemas que pratiquem devolução simples cada um aplica o seu próprio Direito.
A devolução simples também leva a aceitar a transmissão de competência para L3 mesmo que esta lei não seja aplicada por L2 nem sem se considere competente. Por exemplo, quando L1 e L2 pratiquem devolução simples e L3 remeta para L2 com referência material, L1 aplica L3, enquanto L2 e L3 aplicam L2.

D) Teoria da devolução integral, foreign court theory ou dupla devolução

Na devolução simples atende-se à norma de conflitos estrangeira, mas não se respeita o tipo de remissão feito pelo Direito de Conflitos estrangeiro.
Na devolução integral o tribunal do foro deve decidir a questão transnacional tal como ela seria julgada pelo tribunal do país da ordem jurídica designada.
Em princípio a devolução integral assegura que o tribunal de L1 aplicará a mesma lei e dará a mesma solução ao caso que o tribunal de L2. Garante a harmonia entre L1 e L2.
A grande novidade da devolução integral reside no seguinte: a norma de conflitos remete para a ordem estrangeira no seu conjunto, incluindo as próprias normas de L2 sobre a devolução. Assim, atende ao tipo de referência feito por L2.

E) Balanço

Assim, o sistema português parte de uma regra geral de referência material mas aceita a devolução em certos casos. Também uma parte das codificações mais recentes se mostra desfavorável à admissão geral do reenvio, mas não o exclui em determinadas hipóteses.
Por forma geral pode dizer-se que a devolução deve ser admitida como um mecanismo de correcção do resultado a que conduz no caso concreto a aplicação da norma de conflitos do foro, quando tal seja exigido pela justiça conflitual, em especial pelo princípio da harmonia internacional de soluções.

● O regime vigente

A) A regra geral da referência material

O art. 16º CC estabelece que a “referência das normas de conflitos a qualquer lei estrangeira determina apenas, na falta de preceito em contrário, a aplicação do direito interno dessa lei”.
Daqui resulta que a referência material é enunciada como regra geral. Mas não resulta a adopção da tese da referência material, visto que se admite “preceito em contrário”, isto é, que se aceite a devolução nos casos em que a lei o determine. Isto verifica-se desde logo nos arts. 17º, 18º, 36º/2 e 65º/1 in fine CC.

B) Transmissão de competência

O art. 17º permite sob certas condições a transmissão de competência. Nos termos do seu nº1 “Se, porém, o direito internacional privado da lei referida pela norma de conflitos portuguesa remeter para outra legislação e esta se considerar competente para regular o caso, é o direito interno desta legislação que deve ser aplicado”.
“Remeter” deve entender-se como “aplicar”. O que interessa é que L2 aplique uma terceira lei.
Por “direito interno” deve entender-se “direito material” vigente na ordem jurídica do sistema para que remete L2.
Os pressupostos da transmissão de competência são, portanto, dois:
i) que o Direito estrangeiro designado pela norma de conflitos portuguesa aplique outra ordem jurídica estrangeira;
ii) que esta ordem jurídica estrangeira aceite a competência.
È o que se verifica no caso da sucessão imobiliária de um francês que deixa imóvel situado em Inglaterra. A norma de conflitos portuguesa remete para o Direito francês a título da lei da última nacionalidade do de cuius; o Direito francês, por seu turno, submete a sucessão imobiliária à lex rei sitae, remetendo para o Direito inglês; o Direito inglês também submete a sucessão imobiliária à lex rei sitae e por isso, considera-se competente. Logo L2 aplica L3 e L3 considera-se competente.
A transmissão de competência também é de admitir num caso de transmissão em cadeia, em que L2 aplique L4 e L4 se considere competente. Esta hipótese não é directamente visada pelo texto do art. 17º/1, mas é abrangida pela sua ratio.
Isto é de admitir mesmo que uma lei instrumental fique em desarmonia, por exemplo, quando L2 aplicar L4, e L4 se considerar competente, mas L3 aplicar L3. Se não se atinge a harmonia com todas as leis do circuito alcança-se, pelo menos, a harmonia com L2 e com a lei aplicada por L2.
Logo é preferível dizer que os pressupostos são:
i) que L2 aplique Ln (pode ser L3, l4, etc);
ii) que Ln se considere competente.

Só podemos aplicar através da transmissão de competência uma lei que L2 aplique e que se considere competente.
Vejamos o seguinte exemplo: sucessão mobiliária de francês que falece com último domicílio na Alemanha. A norma de conflitos portuguesa remete para o Direito francês, a título de lei da última nacionalidade do de cuius; o Direito francês submete a sucessão mobiliária à lei do último domicílio do de cuius, remetendo por isso para o Direito alemão; o Direito alemão, por seu turno, regula a sucessão pela lei da última nacionalidade, remetendo para o Direito francês; como tanto os tribunais franceses como os alemães praticam devolução simples, o sistema francês aceita o retorno operado pela lei alemã, aplicando o seu direito, e o sistema alemão aceita o retorno operado pela lei francesa, aplicando o seu Direito; logo L2 aplica L2 e L3 aplica L3. Não há transmissão competência porque L2, apesar de remeter primariamente para L3, não aplica L3. Funciona a regra da referência material do art. 16º, nos termos da qual se deve aplicar a lei francesa.
A lei aplicada por L2 pode considerar-se directa ou indirectamente competente.
O art. 17º/2 determina o seguinte: “ Cessa o disposto no número anterior, se a lei referida pela norma de conflitos portuguesa for a lei pessoal e o interessado residir habitualmente em território português ou em país cujas normas de conflitos consideram competente o Direito interno do Estado da sua nacionalidade”.
Este preceito aplica-se em matéria de estatuto pessoal. Nesta matéria, a transmissão de competência, estabelecida nos termos do nº1, cessa em duas hipóteses:
i) o interessado tem residência habitual em Portugal;
ii) o interessado tem residência habitual noutro Estado que aplica o direito material do Estado da nacionalidade.

Uma primeira dificuldade de interpretação deste preceito surge quando a lei pessoal não for a lei da nacionalidade.
A 2ª parte do art. 17º/2 revela que o legislador representou L2 como sendo a lei da nacionalidade.
Em princípio L2 tem de ser a lei da nacionalidade chamada a reger matéria do estatuto pessoal.
Outra dificuldade é determinar o interessado. Deve entender-se que é interessado aquele que desencadeou o funcionamento do elemento de conexão que designou L2. Por exemplo, na sucessão o interessado é o de cuius.
A 2ª parte do art. 17º/2 releva quando o interessado tem residência habitual noutro Estado que aplica a lei da nacionalidade.
Nestas circunstâncias a harmonia internacional não justifica o abandono da conexão julgada mais adequada para reger o estatuto pessoal, a lei da nacionalidade. Por isto cessa a devolução e aplicamos a lei da nacionalidade.
Esta explicação da ratio do preceito é, em linhas gerais, de aceitar. Observe-se apenas que o art. 17º/2 também faz cessar a devolução quando L3 for a lei do domicílio, se este não coincidir com a residência habitual, e a lei da residência habitual aplicar a lei da nacionalidade.
Em certos casos, porém, o art. 17º/3 vem repor a transmissão de competência. Assim como o art. 17º/2 só se aplica quando há transmissão de competência face ao art. 17º/1, o art. 17º/3 só se aplica quando antes se tenham verificado as previsões das normas contidas nos nº 1 e 2.
São quatro os pressupostos de aplicação deste preceito:
i) que se trate de uma das matérias nele indicadas;
ii) que a lei da nacionalidade aplique a lex rei sitae;
iii) que a lex rei sitae se considere competente;
iv) que se verifique um dos casos de cessação da transmissão de competência previsto no nº2.

Nos termos do art. 17º/3, o Direito de Conflitos português admite abandonar o seu critério de conexão, para assegurar a efectividade das decisões dos seus tribunais, quando o Direito da nacionalidade estiver de acordo na aplicação da lex rei sitae.

C) Retorno

O art. 18º CC vem admitir, sob certas condições, o retorno de competência. O art. 18º/1 estabelece que se “ o DIP da lei designada pela norma de conflitos devolver para o direito interno português, é este o direito aplicável”.
O retorno de competência depende, pois, em princípio de um único pressuposto: que L2 aplique o Direito material português.
Se L2 remete para o direito português, mas não aplica a lei portuguesa, não aceitamos o retorno.
Por exemplo, a sucessão mobiliária de um francês com último domicílio em Portugal. A norma de conflitos portuguesa remete para a lei francesa como a lei da última nacionalidade do de cuius; a lei francesa submete a sucessão mobiliária á lei do último domicílio, razão por que remete para a lei portuguesa; mas, como pratica devolução simples, aceita o retorno operado pela lei portuguesa e considera-se competente. Como L2 não aplica L1, não aceitamos o retorno, e aplicamos L2, nos termos do art. 16º.
Por forma geral, pode dizer-se que nunca aceitamos o retorno directo operado por um sistema que pratica devolução simples.
O retorno pode ser indirecto. O que interessa é que L2 aplique o Direito material português. Assim, L2 remete para L3, com devolução simples, e L3 remete para o Direito português, L2 aplica o Direito material português.
Também neste caso é de admitir o retorno mesmo que uma lei instrumental fique em desarmonia, por não aplicar o Direito material português. Com efeito, a harmonia com L2 é mais importante que a harmonia com L3.
Maiores dificuldades suscita a hipótese de L2 não remeter directa e imediatamente para o direito material português, mas condicionar a resposta ao sistema de devolução português.
Mas há razões de fundo para não aceitarmos neste caso o retorno: o retorno não é necessário para haver harmonia: se nós aplicarmos L2, L2 considera-se competente. Não se justifica sacrificar o nosso critério de conexão.
Noutros casos em que L2 não remete incondicionalmente para o direito material português, dificilmente o retorno poderá ser aceite, porquanto, em princípio, não será condição necessária ou condição suficiente para haver harmonia com L2.
O retorno também é limitado em matéria de estatuto pessoal.
Com efeito, o art. 18º/2 estabelece o seguinte: “Quando, porém, se trate de matéria compreendida no estatuto pessoal, a lei portuguesa só é aplicável se o interessado tiver em território português e a sua residência habitual ou se a lei do país desta residência considerar igualmente competente o Direito interno português”.
Este preceito só se aplica quando há retorno nos termos do nº 1.
Em matéria de estatuto pessoal, o retorno só é aceite em duas hipóteses:
i) quando o interessado tem residência habitual em Portugal;
ii) quando o interessado tem residência habitual num Estado que aplica o direito material português.

D) O favor negotti como limite à devolução

È o seguinte o teor do art. 19º/1 CC: “ Cessa o disposto nos dois artigos anteriores, quando da aplicação deles resulte a invalidade ou a ineficácia de um negócio jurídico que seria válido ou eficaz segundo a regra fixada no art. 16º, ou a ilegitimidade de um estado que de outro modo seria legítimo”.
Neste preceito o favor negotti paralisa a devolução.
O preceito tem enorme alcance: sempre que haja devolução por força dos arts. 17º ou 18º esta devolução é paralisada se L2 for mais favorável à validade do negócio ou á legitimidade de um estado que a lei aplicada através da devolução.
Para Ferrer Correia e Baptista Machado o art. 19º/1 só seria aplicável às situações já constituídas – e não à sua constituição em Portugal com a intervenção de uma autoridade pública – e desde que a situação esteja em contacto com a ordem jurídica portuguesa ao tempo da sua constituição.
Não posso concordar com esta doutrina. Ora, tudo indica que o legislador quis dar primazia ao princípio do favor negotti relativamente à harmonia internacional.

E) Casos em que não é admitida a devolução

A devolução não é admitida quando a remissão é feita pelo elemento de conexão designação pelos interessados, utilizado mormente nos arts. 34º e 41º CC.
Com efeito o nº2 do art. 19º determina que “Cessa igualmente o disposto nos mesmos artigos, se a lei estrangeira tiver sido designada pelos interessados, nos casos em que a designação é permitida”.
Em rigor não se trata e fazer cessar ou paralisar a devolução. Não se aplicam os arts. 17º e 18º CC dada a natureza do elemento de conexão.
A devolução também não é admitida em matéria de obrigações contratuais. O art. 15º da Convenção de Roma sobre a Lei Aplicável às Obrigações Contratuais exclui o reenvio.
Nem o art. 19º/2 CC nem o art. 15º da Convenção de Roma excluem que as partes designem como aplicável um sistema globalmente considerado, incluindo o respectivo Direito de Conflitos.
Outras matérias em que a devolução não é admitida por convenções internacionais de unificação do Direito de Conflitos são as obrigações alimentares, a representação voluntária e os “contratos de mediação”.

F) Regimes especiais de devolução

No CC, encontramos disposições especiais sobre devolução em matéria de forma, nos arts. 36º/2 e 65º/1 in fine.
Aqui o favor negotti actua como fundamento autónomo de devolução. O nº1 do art. 36º contém uma conexão alternativa, que abre a possibilidade de o negócio obedecer à forma prescrita por uma das duas leis aí indicadas. O nº 2 cria uma terceira possibilidade: a observância da forma prescrita pela lei para que remete a norma de conflitos da lei do lugar da celebração.
Não se exige que L3 se considere competente. Está aqui a grande diferença com o regime contido no nº1 do art. 17º CC.
Tem-se entendido que o art. 36º/2 adopta um sistema de devolução simples. O que ficou exposto quanto ao art. 36º/2 aplica-se à hipótese de devolução admitida pelo art. 65º/1 in fine. Aqui a devolução vem abrir uma quarta possibilidade para salvar a validade formal de uma disposição por morte.

G) Caracterização do sistema de devolução

São três as características do sistema:
1) Primeiro, a regra geral é a da referência material. Isto decorrer não tanto dos pressupostos da devolução enunciados nos n º 1 dos arts. 17º e 18º CC mas dos limites colocados à devolução pelos seus nº 2, em matéria de estatuto pessoal, e pelo art. 19º CC.
2) Segundo, os arts. 17º e 18º contêm regras especiais, que admitem a devolução, configurando um sistema de devolução sui generis, visto que não corresponde á devolução simples nem à devolução integral. No entanto, parece mais próximo na sua inspiração da devolução integral, visto que a devolução depende sempre do acordo com L2.
3) Terceiro, em matéria de forma do negócio jurídico admite-se a transmissão de competência para uma lei que não esteja disposta a aplicar-se para obter a validade formal do negócio (arts. 36º e 65º).

H) Apreciação crítica

À semelhança da devolução integral promove a harmonia com L2, mas mostra-se superior à devolução integral porquanto evita o círculo vicioso em caso de retorno directo por parte de um Direito que faça devolução integral ou tenha um sistema de devolução semelhante ao nosso e faz depender a transmissão de competência da harmonia com a lei aplicada por L2.

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