terça-feira, 4 de janeiro de 2011

esatuto direito estrangeiro

● Estatuto do Direito estrangeiro

A) Identificação do problema

Tradicionalmente o Direito aplicável às situações transnacionais é necessariamente o Direito vigente numa ordem jurídica estadual: a ordem jurídica do foro ou uma ordem jurídica estrangeira. Quando a norma de conflitos remete para uma ordem jurídica estrangeira levantam-se certas questões, designadamente quanto à interpretação, conhecimento e prova do Direito aplicável.
O problema que nos ocupa neste capítulo diz estritamente respeito àqueles casos em que a norma de conflitos que regula a situação no contexto da ordem jurídica portuguesa remete para uma ordem jurídica estrangeira.

B) Direito estrangeiro aplicável

O Direito aplicável é o que vigora na ordem jurídica designada pela norma de conflitos. Não têm de ser normas que emanam directamente de fonte estadual; podem ser normas de fonte não – estadual que segundo o sistema de fontes da ordem jurídica estrangeira, incluindo o seu sistema de relevância do Direito Internacional na ordem interna, vigoram nessa ordem jurídica.
Assim, são aplicáveis as normas de convenções de Direito material unificado e as normas de Comunidades supraestaduais que vigoram na ordem interna.
Também será respeitada a hierarquia das fontes da ordem jurídica estrangeira, o que pode ser importante, designadamente, quanto à relação entre o costume e a lei.
Quanto ao controlo da constitucionalidade das normas materiais estrangeiras à face da Constituição estrangeira, é de entender que o tribunal português o pode exercer em dois casos:
1) se a inconstitucionalidade foi declarada com força obrigatória e geral na ordem jurídica estrangeira;
2) se, nos termos em que, os tribunais do Estado estrangeiro possam exercer este controlo, como se verifica com o sistema de controlo difuso de constitucionalidade.

O Direito estrangeiro aplicável não tem de ser emanado de órgãos estaduais legítimos ou reconhecidos pelo Estado português.
Não tem de ser necessariamente Direito privado. Também serão aplicáveis as normas de Direito público e que ocupam zonas cinzentas entre o público e o privado que regulem ou tenham incidência sobre situações reguladas pelo DIP.
Resta acrescentar que a aplicação do Direito estrangeiro pode também não ser possível em dois casos. Primeiro quando este Direito exija a intervenção de uma autoridade pública e não exista, no estado local, nenhuma autoridade com competência para praticar os actos necessários.
Segundo, quando a sua aplicação requeira procedimentos especiais que sejam de todo incompatíveis com o Direito processual do foro.

C) Interpretação do Direito estrangeiro (art. 23º/1 CC)

O Direito estrangeiro tem de ser interpretado em conformidade com os critérios de interpretação seguidos no país de origem e com a jurisprudência e doutrina aí dominantes (art. 23º/1 CC).
A circunstância de a mesma regra vigorar simultaneamente em várias ordens jurídicas não impede que a respectiva interpretação seja diferente.

D) Conhecimento e prova do Direito estrangeiro

Para decidir, o tribunal precisa de conhecer os factos e o Direito. Segundo o princípio do dispositivo, os factos têm, em regra, de ser alegados e provados pelas partes.
Já o Direito deve ser conhecido pelo tribunal, deve ser investigado e determinado por sua própria iniciativa, em conformidade com o princípio da oficiosidade (art. 664º CPC).
Poderá exigir-se o conhecimento oficioso do Direito estrangeiro? Em Portugal a questão é resolvida pelo art. 348º/1 e 2 CC. Há um dever de colaboração das partes com o juiz. Não há um ónus da prova. O incumprimento do dever de colaboração não tem por consequência o indeferimento da pretensão, nem, necessariamente a aplicação do Direito material português, embora possa contribuir para uma situação de impossibilidade de determinar o conteúdo da lei estrangeira.
O Direito estrangeiro é de conhecimento oficioso, tem o estatuto de Direito.
Havendo real impossibilidade de determinar o conteúdo do Direito estrangeiro aplicável, o nº 2 do art. 23º CC manda passar à conexão subsidiária. Só na falta de conexão subsidiária é que de acordo com o nº3 do art. 348º CC há lugar à aplicação do direito material português.
A impossibilidade de determinar o conteúdo do Direito estrangeiro aplicável pode ser parcial, quando o tribunal só obtenha conhecimento de certos princípios gerais ou de algumas regras que não permitem resolver inteiramente o caso. Nesta hipótese, entendo que o tribunal deve aplicar as regras do Direito competente que conhece.
Quanto aos órgãos de aplicação do Direito, designadamente aos notários e conservadores, a lei não exige expressamente que conheçam oficiosamente o Direito estrangeiro aplicável.

Capítulo XIV – Limites à Aplicação do Direito Estrangeiro

● Reserva de ordem pública internacional

A) A reserva de ordem pública internacional enquanto cláusula geral que veicula princípios e normas fundamentais da ordem jurídica do foro

A reserva de ordem pública internacional encontra-se desde logo consagrada no art. 22º CC: “Não são aplicáveis os preceitos da lei estrangeira indicados pela norma de conflitos, quando essa aplicação envolva ofensa dos princípios fundamentais da ordem pública internacional do Estado português” (nº1).
A reserva de ordem pública internacional é um limite à aplicação do Direito estrangeiro competente segundo o Direito de Conflitos ou ao reconhecimento de efeitos de um acto público estrangeiro.
Esta ordem pública é “internacional” porque é específica do DIP e não porventura por ser uma ordem pública de Direito Internacional.
Numa ordem jurídica em que o Direito Internacional é objecto de recepção automática, como é o caso da ordem jurídica portuguesa, a ordem pública internacional é também informada por normas e princípios fundamentais de Direito Internacional.
A ordem pública internacional estrangeira pode ser relevante nos casos em que o Direito de Conflitos estrangeiro seja aplicado por força do DIP do foro. É o que se verifica em sede de devolução.
É usual contrapor-se a ordem pública internacional à ordem pública de Direito material, referida designadamente nos arts. 271º/1, 280º/2 e 281º CC.
Mas há diferenças óbvias entre os dois conceitos.
Neste momento interessa em primeira linha a reserva de ordem pública internacional enquanto limite à aplicação do Direito estrangeiro.
A actuação da reserva de ordem pública internacional pressupõe que o Direito de Conflitos português chama o Direito estrangeiro a regular a situação. O problema só se coloca depois de resolvidas todas as questões de concretização do elemento de conexão, de fraude à lei, de devolução e de qualificação. É o fim do processo que se aprecia a compatibilidade da solução a que conduz o direito estrangeiro designado com a ordem pública internacional.
O art. 22º CC acolhe a concepção aposteriorística de ordem pública internacional.
Na concepção vigente no direito português, a reserva de ordem pública internacional só intervém a posteriori, quando a solução material concreta a que o direito estrangeiro conduz é intolerável face a certos princípios e normas da ordem jurídica portuguesa.
A actuação da reserva de ordem pública internacional requer assim uma comparação dos efeitos desencadeados pela lei estrangeira com os que seriam ordenados pela lei do foro.
Creio, porém, que é justificada a tendência para separar a ordem pública internacional da temática das normas susceptíveis de aplicação necessária.
A “norma de aplicação necessária” sobrepõe-se ao sistema de Direito de Conflitos seja por força de uma norma de conflitos unilateral que prevalece, como norma especial, sobre a norma de conflitos geral ou de uma valoração casuística.
Vem a propósito referir as chamadas “cláusulas especiais de ordem pública”. Estas cláusulas especiais constituem, a meu ver, normas “autolimitadas” que por força de normas de conflitos unilaterais ad hoc são aplicáveis qualquer que seja o conteúdo da lei estrangeira que, na ausência delas, seria competente.

B) Outras características da ordem pública internacional

Uma característica fundamental da cláusula de ordem pública internacional consiste na sua excepcionalidade.
Esta cláusula só intervém como limite à aplicação do Direito estrangeiro quando a solução dada ao caso for apenas divergente da que resultaria da aplicação do Direito português, mas também manifestamente intolerável.
Enquanto limite ao reconhecimento dos efeitos de um acto público estrangeiro a cláusula de ordem pública internacional só intervém quando o reconhecimento for manifestamente incompatível com normas e princípios fundamentais da ordem jurídica do foro.
Uma outra característica da cláusula de ordem pública internacional é o seu carácter evolutivo. O conteúdo da ordem pública internacional acompanha a evolução da ordem jurídica, designadamente dos seus valores fundamentais que se encontram consagrados constitucionalmente.
A cláusula de ordem pública internacional caracteriza-se ainda pela relatividade, isto é pela sua actuação depender da intensidade dos laços da situação com o estado do foro.
Já oferece certa margem para dúvida a “variabilidade” da ordem pública internacional conforme se trata da constituição de uma situação ou do reconhecimento de efeitos de situações constituídas no estrangeiro.

C) Consequências da intervenção da reserva de ordem pública internacional

As consequências da intervenção da cláusula são o afastamento do resultado a que conduz a aplicação do direito estrangeiro ou o não reconhecimento dos efeitos de um acto público estrangeiro.
Quando a cláusula actua como um limite à aplicação do direito estrangeiro vale um princípio do mínimo dano à lei estrangeira.
Se o afastamento da solução contrária à ordem pública internacional não resultar uma lacuna a aplicar-se o Direito estrangeiro.

● Direito Internacional Público e direito Comunitário

A) Direito Internacional Público

A questão de saber se os órgãos estaduais de aplicação do direito podem, e até se devem controlar a conformidade com o Direito Internacional do Direito estrangeiro chamado pela norma de conflitos e de efeitos de actos públicos estrangeiros, foi discutida designadamente com respeito à expropriação ou nacionalização operada por um Estado estrangeiro.
Uma parte da doutrina pronuncia-se a favor do controlo. Em sentido contrário, algumas decisões negaram a existência de um princípio de Direito Internacional que permita aos tribunais de um Estado considerar inválida a lei estrangeira ou que obrigue os tribunais de um Estado a considerar à partida nulo um acto soberano estrangeiro que viole o Direito internacional.
Não creio que se deva duvidar da legitimidade do controlo perante o DIPúblico.
Já é mais complexa a questão de saber se há uma obrigação internacional de o realizar.
Creio que se deve distinguir entre o Direito Internacional Público directa e imediatamente aplicável na esfera interna e o restante DIPúblico. Quanto ao primeiro haverá uma obrigação internacional de controlar a conformidade do Direito estrangeiro com tais normas internacionais.
Em minha opinião, o DIPúblico constitui um limite autónomo, porque a aplicação das normas internacionais não depende necessariamente dos pressupostos de intervenção da ordem pública internacional.

B) Direito Comunitário

Considerações paralelas ás tecidas com respeito ao DIPúblico justificam que o Direito Comunitário constitua um limite autónomo á aplicação do Direito estrangeiro.

● Constituição

Foi atrás sublinhado que as normas e princípios constitucionais, principalmente os relativos a direitos fundamentais, assumem a maior importância para a ordem jurídica internacional. Resta saber até que ponto estas normas e princípios só actuam, enquanto limite à aplicação do Direito estrangeiro competente, através da ordem pública internacional, ou podem ser aplicados directamente a situações transnacionais.
Por um lado, nem todas as normas e princípios constitucionais seriam necessariamente veiculados pela ordem pública internacional; o órgão de aplicação do Direito poderia legitimamente considerar que certos preceitos constitucionais não constituem um limite á aplicação do Direito estrangeiro por não integrarem a ordem pública internacional.
Por outro lado, segundo a tradicional caracterização da reserva de ordem pública internacional, esta reserva não actua perante qualquer divergência entre o Direito estrangeiro e as concepções jurídicas do foro, mas só em caso de manifesta incompatibilidade; portanto, nem toda a violação de um preceito constitucional seria susceptível de desencadear a actuação da reserva de ordem pública internacional.
Para determinar se a lei estrangeira viola um direito fundamental e, assim, desencadeia a actuação da ordem pública internacional, há que avaliar a intensidade dos laços existentes com o estado do foro.
Em minha opinião é de afirmar uma pluralidade de modos de actuação da Constituição portuguesa como limite à aplicação do Direito estrangeiro designado pelo sistema de Direitos de Conflitos.
Primeiro, para certas normas constitucionais pode justificar-se a formulação de regras de conflitos unilaterais ad hoc.
Na omissão do legislador constitucional, estas normas de conflitos terão de ser desenvolvidos pela jurisprudência e pela doutrina.
Segundo, certas normas constitucionais poderão mesmo ser de aplicação universal, por consagrarem direitos básicos de todo o ser humano. Estas normas são aplicáveis a situações transnacionais independentemente de qualquer laço com o Estado português.
Terceiro, nos restantes casos, em que não é possível ou conveniente estabelecer regras de conflitos especiais nem se trata de normas constitucionais de aplicação universal, é necessária uma determinação casuística do âmbito de aplicação da norma. Estes casos são reconduzíveis à reserva de ordem pública internacional.
Mas a ordem pública internacional não só é informada pelas normas e princípios constitucionais como também tem de ser conformada à luz do primado da Constituição.
De entre as consequências deste modo de ver as coisas são de salientar três:
1) a vigência da cláusula geral da ordem pública internacional é imposta pela Constituição;
2) as normas e princípios constitucionais, designadamente em matéria de direitos, liberdades e garantias são sempre fundamentais e por conseguinte qualquer violação destas normas e princípios justifica a intervenção da ordem pública internacional;
3) parece de admitir que a fiscalização concreta da constitucionalidade pode ter por objecto as normas estrangeiras chamadas pela norma de conflitos, e que por conseguinte o Tribunal Constitucional é competente para controlar se a reserva de ordem pública internacional deve ser oposta à aplicação de norma estrangeira com fundamento na violação de norma constitucional.

qualificação

A) Generalidades

A qualificação é um tema central do DIP. Numa acepção ampla, trata-se de resolver os problemas de interpretação e aplicação da norma de conflitos que dizem respeito aos conceitos técnico – jurídicos utilizados na sua previsão.
Estes conceitos delimitam o objecto de remissão. O que é o objecto da remissão, a matéria que a norma de conflitos remete para dado Direito?
O objecto da remissão são situações da vida ou aspectos de situações da vida transnacional.
Em sentido estrito, a qualificação é tradicionalmente concebida como a operação pela qual se subsume uma situação da vida, ou um seu aspecto, no conceito técnico – jurídico utilizado para delimitar o objecto da remissão.
A qualificação é um processo que se verifica quer na aplicação das normas de conflitos quer na aplicação das normas materiais.
O nosso sistema de Direito de Conflitos dispõe de uma norma relevante em matéria de qualificação. Nos termos do art. 15º CC a “competência atribuída a uma lei abrange somente as normas que, pelo seu conteúdo e pela função que têm nessa lei, integram o regime do instituto visado na regra de conflitos”.

B) Operações envolvidas na qualificação

Não deve isolar-se a interpretação da aplicação, nem a delimitação do âmbito de aplicação da norma do apuramento das circunstâncias do caso relevantes para a sua aplicação.
O aplicador tem de fazer um vaivém entre a norma o caso, o qual se vem traduzir quer numa adaptação da norma às circunstâncias do caso quer num enriquecimento do conteúdo dos conceitos a que recorre a previsão normativa.
Tradicionalmente a qualificação é encarada segundo um esquema subsuntivo, baseado na lógica formal, o silogismo de subsunção.
Assim, em sentido amplo, o problema da qualificação envolve três momentos.
No primeiro momento estabelece-se a premissa maior, que é a previsão da norma de conflitos. O estabelecimento desta premissa envolve a interpretação da proposição jurídica, por forma a determinar a previsão normativa, mediante um enunciado das suas notas conceptuais.
No segundo momento estabelece-se a premissa menor, por meio de uma delimitação do objecto da remissão, isto é, da determinação das situações da vida que se vão subsumir. Esta delimitação é feita tendo em atenção notas características jurídicas, envolvendo pois uma caracterização das situações da vida.
O terceiro momento é a subsunção, traduzindo-se na recondução da matéria delimitada na previsão normativa. Corresponde à qualificação em sentido estrito.
Relativamente a este esquema subsuntivo cabe fazer duas advertências. Primeiro, tende hoje a admitir-se que a maioria dos casos a interpretação – aplicação não poderá ser reconduzida exclusivamente a operações lógico – formais. Frequentemente será necessária uma valoração.
A segunda advertência é a seguinte: o esquema subsuntivo apresentado não é um esquema para a resolução de hipóteses, serve apenas para a compreensão das várias operações incluídas na qualificação em sentido amplo.

C) Interpretação dos conceitos que delimitam o objecto da remissão

No CC o legislador optou por utilizar na previsão das normas de conflitos conceitos técnico – jurídicos que se reportam a categorias de situações jurídicas definidas pelo seu conteúdo típico e por notas funcionais ou a questões parciais.
As obrigações e os direitos reais são situações jurídicas agrupadas segundo um critério estrutural, isto é, atendendo ao conteúdo da situação jurídica. Na obrigação o direito à prestação o e dever de prestar, com acento no aspecto passivo, na obrigação. No direito real a atribuição de uma coisa corpórea que, em princípio, todos devem respeitar.
Já o critério do agrupamento seguido relativamente às relações familiares e às sucessões parece ser outro. É um critério de pendor funcional e institucional. Nas sucessões a transmissão de direitos mortis causa, no Direito da Família as situações jurídicas que respeitam á instituição familiar.
A primeira questão que se coloca relativamente à interpretação dos conceitos técnico – jurídicos utilizados na previsão das normas de conflitos é a de saber a que Direito recorrer para o efeito.
A solução clássica consiste no recurso aos conceitos homólogos do Direito material do foro. Por exemplo, para determinar o conteúdo do conceito de obrigação, utilizando nas normas de conflitos, deveria recorrer-se à definição contida no art. 397º CC.
A posição adoptada com respeito às normas de conflitos de fonte interna é, seguindo Isabel de Magalhães Collaço, a de partir do Direito material do foro, retirando da sua análise notas para a determinação do conceito empregue pela norma de conflitos, mas tendo em conta as finalidades específicas prosseguidas pelo Direito de Conflitos.
Em suma, a interpretação das normas de conflitos de fonte interna é ancorada no Direito material do foro, mas autónoma.

D) Delimitação do objecto da remissão

Coloca-se agora a questão de saber como delimitamos as situações da vida que se hão-se reconduzir aos conceitos interpretados nos termos atrás expostos.
Já sabemos que o objecto da norma de conflitos são situações da vida ou aspectos destas situações, mas para a sua delimitação, a previsão das normas de conflitos utiliza conceitos técnico – jurídicos que atendem ao conteúdo jurídico típico e (ou) a critérios funcionais.
O objecto da remissão é um concretum, uma situação da vida ou um seu aspecto.
Não pode, por exemplo, dizer-se que o direito do arrendatário, em abstracto, se qualifica como direito real ou como direito de crédito. Face a certos sistemas o arrendamento é um instituto real, noutros um instituto predominantemente obrigacional, noutros ainda tem carácter misto.
Assim, por exemplo, pode dizer-se que certa relação da vida, caracterizada face ao Direito X como relação de arrendamento com determinado regime, se reconduz à norma de conflitos do art. 46º, ou às normas de conflitos da Convenção de Roma, ou que diferentes aspectos da relação caem sob o império de cada uma destas normas de conflitos.
A que sistema pedir a caracterização da situação da vida? São possíveis duas respostas fundamentais:
1) ao direito material do foro;
2) ao Direito material da lex causae, isto é, da lei competente
É preferível a caracterização lege causae.

E) Qualificação em sentido estrito

No terceiro momento – qualificação em sentido estrito – trata-se de reconduzir a matéria, o concretum caracterizado juridicamente nos termos anteriormente expostos, ao conceito empregue na previsão da norma de conflitos.
Esta operação tem uma vertente positiva e uma vertente negativa. Por um lado, a recondução da matéria ao conceito utilizado na previsão da norma de conflitos, que desencadeia a aplicação desta norma. Por outro lado, a não recondução da matéria aos conceitos utilizados na previsão de outras normas de conflitos, que determina o seu afastamento. Isto sem prejuízo da possibilidade de concursos de normas de conflitos, adiante examinados.
Entre Direitos “vizinhos”, isto é, sistemas jurídicos pertencentes à mesma família de Direitos, pode presumir-se a equivalência de qualificações.
Mas atenção: é uma presunção que pode e deve ser ilidida sempre que perante o conteúdo e função do instituto jurídico estrangeiro se imponha uma qualificação diferente perante o Direito de Conflitos português.
Em suma , embora o objecto da qualificação, as situações da vida ou aspectos parcelares, tenha de ser caracterizado à face da lei ou leis potencialmente aplicáveis, a última palavra sobre a qualificação do objecto deve ser proferida segundo o critério de qualificação do sistema a que pertencem as normas de conflitos em jogo.
Como o Direito de Conflitos aplicável é, em primeira linha, o Direito de Conflitos de foro, o critério de qualificação, é, em primeira linha, o critério de qualificação do foro.
Mas nos casos em que haja aplicação do Direito de Conflitos estrangeiro, o critério de qualificação há-se ser definido perante o respectivo sistema de Direito de Conflitos.
Quando as normas de conflitos em presença forem de fonte supraestadual, maxime convencional, o critério de qualificação deve fundar-se, em primeira linha, na estrutura e finalidades do Direito de Conflitos convencional.
Embora a caracterização seja feita lege causae, a qualificação é feita lege fori, rectius segundo o sistema de Direito de Conflitos a que pertencem as normas de conflitos em presença.

F) Especialidades das normas de conflitos ad hoc e das normas de remissão condicionada

A norma de conflitos ad hoc tem uma característica estrutural própria: não carece de delimitar ela própria a categoria de situações jurídicas ou a questões parcial a que se reporta, visto que só actua em função de uma determinada norma ou conjunto de normas materiais. A norma de conflitos ad hoc tem por objecto as situações ou aspectos de situações susceptíveis de serem disciplinadas pela norma ou conjunto de normas materiais a que está indissociavelmente ligada.
Não se coloca, portanto, um problema específico de qualificação no plano do DIP.
Passe-se agora às normas de remissão condicionada. Para operar a remissão condicionada tem, em princípio de se encontrar uma situação da vida ou um aspecto de uma situação da vida, juridicamente caracterizada, que seja reconduzível à previsão da norma.
Se houver uma condição adicional relativa ao resultado material, esta condição integra a previsão da norma, e, por conseguinte, a previsão não se verifica se no Direito estrangeiro não se verificar o resultado ou não existirem determinadas normas.
Todavia, pode acontecer que na previsão da norma de remissão condicionada não se encontre outro conceito delimitador do objecto da remissão que não seja o conceito relativo à condição material da remissão.

● Dificuldades suscitadas pelo fraccionamento conflitual das situações da vida. Delimitação

Já anteriormente, ao tratar da estrutura geral da norma de conflitos, me referi ao dépeçage, ao fraccionamento conflitual das situações da vida.
Este fraccionamento suscita vários tipos de problemas. Cuidando, por agora, apenas daqueles problemas que concernem directamente à qualificação, temos, por um lado, as dificuldades que suscita a delimitação dos aspectos que são abrangidos por uma e outra das normas de conflitos em jogo, e, por outro, o do concurso e falta de normas aplicáveis.
O problema da delimitação surge quando as situações, com o conteúdo que lhes é atribuído pelas leis em presença, têm carácter misto, pondo em jogo mais que uma norma de conflitos que se reporta a categorias de situações jurídicas. Por exemplo, um contrato de compra e venda que gera obrigações e vai orientado à produção de efeitos reais.
As questões jurídicas suscitadas por diferentes aspectos de uma mesma situação da vida são designadas questões parciais. A delimitação vem a traduzir-se na recondução das questões parciais a uma ou outra das normas de conflitos aplicáveis.
Em muitos casos não se pode contar com uma indicação do legislador. Por exemplo, o problema da delimitação tem de ser resolvido pelo intérprete com respeito a questões como a transferência da propriedade e a passagem do risco na compra e venda.
Podemos distinguir entre um núcleo ou conteúdo mínimo determinado do conceito utilizado para delimitar o objecto da remissão, e zonas cinzentas ou periféricas.
O núcleo do conceito abrange o conjunto de questões jurídicas que são indubitavelmente abrangidas pela previsão da norma, razão por que não suscitam dificuldades de delimitação.
Já as questões jurídicas que caem na zona periférica suscitam um problema específico de interpretação dos conceitos que delimitam o objecto da remissão das normas de conflitos em jogo.
Um segundo tipo de problemas decorre de uma combinação do fraccionamento com valorações contraditórias dos mesmos aspectos das situações da vida ou do recurso a meios técnico – jurídicos diferentes para tutelar valores substancialmente idênticos por parte das leis em presença.
Da acção combinada destes factores vai resultar que, pelo menos em primeira linha, nos possam surgir, como simultaneamente aplicáveis aos mesmos aspectos de uma situação da vida, duas ou mais leis, por força de duas ou mais normas de conflitos, ou que, ao contrário não surjam como aplicáveis quaisquer normas das leis em presença. Adiante trataremos destes problemas de concurso e de falta de normas aplicáveis.

● Exegese do art. 15º CC

Segundo o art. 15º CC “A competência atribuída a uma lei abrange somente as normas que, pelo seu conteúdo e pela função que têm nessa lei, integram o regime do instituto visado na regra de conflitos”.
Este preceito só faz alusão ao primeiro momento – interpretação dos conceitos que delimitam o objecto da remissão – quando se refere ao “regime do instituto visado na regra de conflitos”.
“Instituto” é um termo pouco feliz, porque grande parte dos conceitos que delimitam o objecto da remissão não se reportam a institutos – por exemplo, capacidade, forma, relações entre cônjuges e relações entre pais e filhos. “Instituto” tem se ser entendido como referindo qualquer uma das categorias normativas utilizadas para delimitar o objecto da remissão.
Quanto à delimitação do objecto da remissão o art. 15º já contém uma indicação importante: manda atender ao conteúdo das normas aplicáveis e à função que têm no sistema a que pertencem.
Aponta-se aqui claramente no sentido de uma caracterização lege causae.
A qualificação em sentido estrito é indirectamente visada no início do preceito: “A competência atribuída a uma lei abrange somente”.
Já sabemos que não podem ser reconduzidas à previsão de uma norma de conflitos situações da vida que, com a relevância jurídica que lhes seja atribuída pela lei para que aponta o respectivo elemento de conexão, não sejam reconduzíveis ao conceitos que delimita o objecto da norma.
A letra do art. 15º parece sugerir que o objecto da qualificação são normas, e não situações da vida.
A formulação dada ao art. 15º deve antes ser entendida à luz da correlação entre qualificação e estatuição da norma de conflitos. A determinação do sentido e alcance do conceito utilizado na previsão da norma e a delimitação do objecto da remissão (que ocorrem nos dois primeiros momentos da qualificação), pré – determinam o alcance jurídico – material da remissão (que integra a estatuição da norma de conflitos).

Capítulo XII – Problemas Especiais de Interpretação e Aplicação do Direito de Conflitos

● Razão de ordem. A adaptação

A) Generalidades

A missão do DIP de realizar a justiça nas relações transnacionais não termina, porém, com a designação da lei competente.
O método a seguir na interpretação e aplicação dos conceitos que delimitam o objecto da remissão foi, em geral, estudado no capítulo anterior. Os problemas especiais que agora examinarei também estão intimamente relacionados com a estrutura e os fins do sistema de Direito de Conflitos.
De entre estes problemas especiais salientam-se a questão prévia, o concurso e a falta de normas aplicáveis, a substituição e a transposição.
Com frequência trata-se separadamente dos ditos “conflitos de qualificação”, a propósito da qualificação, e da adaptação e questão prévia. A autonomia da substituição e da transposição relativamente á adaptação é discutida. Os autores que aceitam esta autonomia fazem diferentes agrupamentos de casos.
Desde logo, procedo e uma diferente arrumação de matérias, que tem por critério a natureza dos problemas colocados. Os ditos “conflitos de qualificações” são problemas especiais de interpretação e aplicação do direito de conflitos e, por conseguinte, serão tratados neste capítulo. Em contrapartida, pelas razões que apresentarei em seguida, não autonomizarei a adaptação enquanto problema especial de interpretação e aplicação do Direito de Conflitos.
B) A adaptação

O termo “adaptação” pode ser utilizado em duas acepções distintas: adaptação – problema e adaptação – solução.
O termo começa por ser aplicado a determinados casos em que a aplicação de ditos direitos materiais competentes a uma mesma situação internacional origina dificuldades, que são solucionadas por meio de um ajustamento das normas em presença.
Por exemplo, o art. 26º/2 CC. Suponha-se que morrem, num acidente de viação, um francês e a sua filha súbdita do Reino Unido domiciliada em Inglaterra. Não é possível determinar qual dos dois faleceu primeiro.
O pai deixou testamento em que designa a filha como herdeira universal caso lhe sobrevivesse, nomeando um amigo como herdeiro substituto.
A filha tinha feito testamento idêntico com relação ao pai e a uma miga.
Quer o amigo do pai quer a amiga da filha reclamam as duas heranças.
O Direito francês estabelece uma presunção de sobrevivência da filha e o Direito inglês uma presunção de sobrevivência do pai.
Há aqui uma incompatibilidade que resulta do chamamento de leis diferentes pela norma do art. 26º a reger o termo da personalidade jurídica de cada um deles.
O art. 26º/2 CC remete para o art. 68º/2 CC que estabelece uma presunção de comoriência, isto é, de falecimento simultâneo. Daí resulta que nem a filha herda do pai nem o pai da filha. A herança da filha vai para a amiga e a herança do pai vai para o amigo.
A adaptação – problema vai assim abranger problemas de conjugação de estatutos que têm de ser resolvidos à luz da ideia de unidade do sistema jurídico.
Sucede, porém, que há outros problemas cuja solução passa por uma modelação da solução material.
Primeiro, como consequência da intervenção da ordem jurídica internacional, podemos ter de introduzir ajustamentos na aplicação da lei estrangeira, como adiante veremos.
Segundo, na resolução de problemas de sucessão de estatutos podemos ter de ajustar soluções materiais; trata-se geralmente de casos de transposição que têm de ser solucionados por meio de adaptação.
Terceiro, pode suceder excepcionalmente que o problema jurídico – material seja alterado essencialmente por circunstâncias decorrentes da internacionalidade da situação. Isto pode justificar um ajustamento do critério de decisão à especificidade do caso.
Portanto a adaptação – solução tem lugar em casos que não são adaptação – problema.
A tipologia de problemas especiais de interpretação e aplicação do Direito de Conflitos que se segue não é exaustiva. Há designadamente problemas de conjugação de estatutos que não se podem configurar como casos de concurso de normas de conflitos, falta de normas aplicáveis, substituição ou transmissão.

● Questão prévia

Na linha do entendimento tradicional, entendo que são quatro os pressupostos de um problema de questão prévia.
Primeiro, na previsão da norma material aplicável por força de uma norma de conflitos integra-se um pressuposto cuja verificação constitui matéria abrangida por outra norma de conflitos.
Por exemplo, sucessão legal de um suíço que falece com último domicílio na Suiça e deixando bens em Portugal. A questão principal é a determinação dos sucessíveis e das suas quotas hereditárias. O art. 62º CC remete para a lei Suiça. O art. 457º CC suíço estabelece como primeira classe de sucessíveis legais os descendentes do autos da sucessão. Pode discutir-se se dada pessoa é ou não filhos do autor da sucessão. É uma questão prévia relativa à filiação.
Segundo, para reger a questão principal – no exemplo dado a sucessão – é competente uma lei estrangeira – no exemplo a Suiça.
Terceiro, há uma divergência entre a norma de conflitos portuguesa aplicável á questão prévia e a norma de conflitos da lei reguladora da questão principal aplicável à questão prévia.
Quarto, a divergência entre o DIP da lex fori e o da lex causae, isto é, da lei aplicável á questão principal, leva à apreciação da questão prévia segundo leis diferentes que dão solução diferente à questão prévia.
Assim caracterizado o problema tem fundamentalmente duas soluções:
i) aplicar a norma de conflitos do foro para determinar o direito aplicável à questão prévia – tese da conexão autónoma;
ii) aplicar a norma de conflitos da lei reguladora da questão principal para determinar o direito aplicável à questão prévia – tese da conexão subordinada.

A tese da conexão autónoma nem considera existir bem um problema, sendo óbvio que as normas de conflitos de um sistema se aplicam quer a questão se suscite como principal ou como prévia.
Para a tese da conexão subordinada não faria sentido dar à questão prévia uma solução diferente da dada pelo DIP da lei reguladora da questão principal.
Entretanto, tem ganho crescente importância uma terceira orientação segundo a qual problema da questão prévia não deve ser resolvido mediante um critério geral, mas em função da questão jurídica ou da norma de conflitos em causa.
A favor da tese da conexão subordinada são invocados diversos argumentos. O argumento mais importante é a harmonia internacional de soluções.
Podem contudo ser invocados três argumentos contra a tese da conexão subordinada:
1) o princípio da harmonia interna – se aplicar-mos às mesmas situações da vida leis diferentes, consoante tais situações forem apreciadas a título principal ou a título prejudicial, chegaremos frequentemente a soluções contraditórias;
2) a certeza jurídica sobre a lei aplicável
3) A própria estrutura de sistemas de Direito de Conflitos como o português, o modo como espelham o carácter analítico do DIP, ao submeterem diversos aspectos das situações a diferentes normas de conflitos, parece não ser compatível com uma regra geral de conexão subordinada.

Mesmo que a tese da conexão subordinada fosse de preferir de iure condendo, que não é a minha opinião, cumpriria reconhecer que não é compatível com o direito vigente.
O exposto não exclui que, excepcionalmente, possa ser de seguir a tese da conexão subordinada. Isto verifica-se perante o Direito vigente, em certas matérias e que vigora Direito de Conflitos unificado.
Portanto, as excepções não desvirtuam a regra segundo a qual da circunstância de uma questão se suscitar a título preliminar não decorre em tratamento conflitual diferente.

● Concurso e falta de normas aplicáveis

Os problemas de concurso e de falta de normas aplicáveis decorrem do fraccionamento de situações da vida pelo Direito de Conflitos. Em princípio, este fraccionamento traduz-se na sujeição de aspectos diferentes das situações a diversas normas de conflitos.
No entanto, em consequência de diferentes valorações dos mesmos aspectos das situações da vida ou do recurso a meios técnico – jurídicos em presença, podem surgir como simultaneamente aplicáveis ao mesmo aspecto de uma situação da vida, duas ou mais leis, por força de duas ou mais normas de conflitos.
Dos mesmos factores pode resultar que não surjam como aplicáveis quaisquer normas das leis em presença. Fala-se então, de uma falta de normas aplicáveis.
O concurso de normas de conflitos pode apresentar três configurações diferentes:
1) numa primeira configuração, existe uma contradição normativa entre as normas materiais das leis em presença, por estas desencadearem consequências jurídicas incompatíveis entre si.
2) num segundo caso, as consequências jurídicas das normas materiais das leis em presença são compatíveis entre si, mas a sua aplicação simultânea constituiria uma contradição valorativa;
3) na terceira hipótese nada obsta á aplicação simultânea das normas materiais das leis em presença.
Só nos dois primeiros casos há um problema especial de interpretação e aplicação do Direito de Conflitos que carece de resolução.
São vários os critérios para resolver os casos de pluralidade de normas aplicáveis:
i) primeiro, a interpretação das normas de conflitos em presença pode levar a concluir que só uma delas deve ser aplicada (casos de concurso aparente de normas de conflitos)
ii) quando isto não se verifique, deve procurar-se estabelecer uma hierarquização entre as normas de conflitos em jogo, com base na sua interpretação
iii) em alguns casos pode ser necessário combinar uma hierarquização com uma adaptação das normas de conflitos.

Passe-se agora aos casos de falta de normas aplicáveis. São casos em que a situação é juridicamente relevante perante duas ou mais leis em presença, mas, em virtude, de valorações contraditórias ou do recurso a meios técnico – jurídicos diferente, não surgem como aplicáveis quaisquer normas materiais.
A solução dos problemas de falta de normas aplicáveis passa, em primeira linha por uma adaptação ao nível do Direito de Conflitos.

● Substituição e transposição

A substituição e a transposição tem algo de comum com a adaptação – problema: são problemas que surgem quando uma situação da vida suscita questões que devem ser apreciadas segundo Direitos materiais diferentes.
Na substituição o preenchimento de um elemento da previsão da norma material de uma ordem jurídica deve ser apreciado segundo uma ordem jurídica diferente. Parte-se da primeira ordem jurídica para a segunda. O conteúdo jurídico conformado pela segunda ordem jurídica é um mero pressuposto de aplicação da norma da primeira ordem jurídica (norma pressuponente). Entre estas ordens jurídicas estabelece-se um nexo de prejudicialidade ou pressuposição.
Entendo que se trata de reconduzir uma situação da vida, ou um seu aspecto, com o conteúdo jurídico que lhe é atribuído por uma ordem jurídica. Sublinha-se, assim, que não é um problema de equivalência de institutos jurídicos, mas de qualificação jurídico – material de uma situação concreta.
O problema da substituição tem em primeira linha de ser resolvido à luz da interpretação da norma material pressuponente. É esta interpretação que fornece as notas conceptuais que a situação jurídica conformada por outra ordem jurídica deve preencher para poder ser reconduzida à previsão da norma pressuponente.
Se a interpretação da norma pressuponente não fornecer indicações em sentido contrário, a substituição envolve essencialmente um raciocínio de analogia. Quando um elemento da previsão da norma pressuponente se reporta a uma situação jurídica, tem em vista, em princípio, uma situação conformada por outras normas materiais da mesma ordem jurídica. Quando, porém, a situação pressuposta for submetida pelo Direito de Conflitos a uma ordem jurídica diferente, torna-se necessário examinar se a situação conformada por esta ordem jurídica é suficientemente análoga com uma situação conformada pela ordem jurídica da norma pressuponente para que se justifique a mesma valoração.
Em princípio, o Direito de Conflitos do foro deve respeitar as soluções em matéria de substituição seguidas na ordem jurídica da norma pressuponente.
Na transposição postula-se que o conteúdo jurídico que uma situação tem à face de determinado Direito, deve, tanto quanto possível, ser respeitado à face de outra ordem jurídica, designadamente quando esta for chamada a reger a produção de certos efeitos. Parte-se da ordem jurídica que dá conteúdo jurídico à situação e não da ordem jurídica que rege a produção dos efeitos. Entre as duas ordens jurídicas estabelece-se, por isso, uma relação de preordenação.
A situação é primariamente conformada por uma ordem jurídica diferente daquela que vai disciplinar a produção de certos efeitos. A situação não releva somente enquanto pressupostos de produção de efeitos perante o “estatuto dos efeitos”, apresenta-se como uma situação pré – conformada e preordenada à produção de certos efeitos.
A opção pela óptica de substituição ou de transposição depende do DIP do foro, da interpretação das normas de conflitos em presença.

fraude a lei

Caracterização da figura

A fraude à lei é reconhecida como um instituto jurídico que integra a teoria geral do Direito em alguns sistemas. No Direito português o ponto é controverso.
O problema da fraude à lei em Direito privado material surge-nos principalmente no domínio dos negócios jurídicos, quando os sujeitos procuram tornear uma proibição legal através da utilização de um tipo negocial não proibido. Para quem admite a autonomia da fraude à lei esta apresenta-se, então, como uma violação indirecta de uma norma proibitiva.
No Direito de Conflitos Internacional Privado trata-se geralmente de alcançar o resultado que a norma proibitiva visa evitar, mas a manobra defraudatória consiste no afastamento da lei que contém essa norma proibitiva, na “fuga de uma ordem jurídica para outra”. Mas também é concebível a defraudação de normas imperativas não proibitivas (por exemplo, as que estabeleçam requisitos de forma de negócios jurídicos) através do afastamento da lei que as contém.
Um importante sector da doutrina menos recente encarava a fraude à lei como um caso particular da ordem pública internacional. Hoje tende-se a estabelecer uma clara distinção entre os dois institutos: na ordem pública internacional está em causa a compatibilidade do resultado a que conduz a aplicação da lei está em causa o afastamento da lei normalmente competente e o desrespeito da norma imperativa nela contida, ainda que o Direito do foro não contenha uma norma equivalente.
Quanto à tipologia da fraude à lei em Direito de Conflitos podemos distinguir a manipulação do elemento de conexão e a internacionalização fictícia de uma situação interna.
Os elementos da fraude são dois: um elemento objectivo e elemento subjectivo.
Decorre do já exposto que o elemento objectivo consiste na manipulação com êxito do elemento de conexão ou na internacionalização fictícia de uma situação interna.
Para que se verifique a manipulação com êxito do elemento de conexão tem de haver, em primeiro lugar, uma manobra contra a lei normalmente aplicável.
Em suma, a fraude à lei em Direito de Conflitos pressupõe que haja uma norma material defraudada mas tutela a justiça da conexão e não a justiça material.
A manipulação tem de ter êxito, isto é, tem de desencadear o chamamento de uma lei diferente.
O elemento subjectivo, ou volitivo, consiste na vontade de afastar a aplicação de uma norma imperativa que seria normalmente aplicável. È necessário dolo, não há fraude por negligência.
O dolo incide sobre a modelação do conteúdo concreto do elemento de conexão ou sobre a internacionalização fictícia da situação interna.
Este elemento subjectivo tem geralmente de ser inferido dos factos, com base em juízos de probabilidade fundados em regras de experiência.
Importa referir casos em que o legislador qualifica o elemento de conexão de modo a evitar ou dificultar a fraude. Fala-se, a este respeito, de medidas preventivas da fraude.
Assim, no art. 33º/1 CC o legislador manda atender à sede principal e efectiva da administração da pessoa colectiva.
Assim também em certos casos de imobilização do elemento de conexão em que se fixa definitivamente o momento da sua concretização. Por exemplo, no art. 55º/2 quando determina que em caso de mudança de lei competente na constância do matrimónio só pode fundamentar a separação ou o divórcio algum facto relevante ao tempo da sua verificação.

● A sanção da fraude

Quanto á sanção da fraude existem duas posições. Uma posição, desenvolvida pela jurisprudência francesa e entre nós adoptada por Fernando Olavo, seguindo o princípio fraus omnia corrumpit, considera que todos os actos integrados no processo fraudulento, incluindo, por exemplo, a própria naturalização obtida no estrangeiro, são nulos ou para todos os efeitos inoperantes.
Outra posição, aceite na doutrina portuguesa mais recente, assinala que o Estado do foro não pode declarar inválida ou nula a aquisição de uma nacionalidade estrangeira. O que o Direito de Conflitos do foro pode fazer é recusar a essa naturalização qualquer efeito na aplicação da norma de conflitos.
O caminho seguido pelo legislador, no art. 21º CC, vai neste segundo sentido.
Do texto do art. 21º decorre claramente que a sanção da fraude à lei em Direito Internacional Privado se confina àquilo que respeite à “aplicação das normas conflitos”.
Irrelevante é a manipulação ou a internacionalização, não os actos praticados. Por exemplo, se um português se naturaliza no Reino Unido com o intuito de afastar as normas sobre sucessão legitimária da lei portuguesa, e fez testamento em que deixa todos os seus bens a um amigo, o testamento não é irrelevante. A sanção da fraude consiste antes na aplicação da lei portuguesa, que obriga á redução da deixa testamentária por inoficiosidade.
Hoje é geralmente aceite que a fraude à lei estrangeira também deve ser sancionada. Outra questão é a de saber se no testamento da fraude à lei estrangeira se deve ter em conta a posição da lei defraudada. Esta questão divide a doutrina portuguesa. Ferrer Correia e Baptista Machado não diferenciam entre a sanção da fraude à lei do foro e a sanção da fraude à lei estrangeira. Isabel de Magalhães Collaço enquanto a fraude à lei do foro é sempre sancionada a fraude à lei estrangeira só é sancionada em dois casos:
- se a lei estrangeira defraudada também sanciona a fraude;
- se embora a lei estrangeira defraudada não sancione a fraude este em causa, na perspectiva do DIP do foro, um princípio do mínimo ético nas relações internacionais, que não se conforma com o desrespeito da proibição contida na lei normalmente competente.
Em minha opinião, a fraude à lei estrangeira que não reaja à fraude deve ser sancionada, excepcionalmente, quando seja eticamente intolerável à face do Directo de Conflitos português.

devolução ou reenvio

A) Identificação do problema

Quando a norma de conflitos portuguesa remete para uma ordem jurídica estrangeira pode suceder que esta ordem jurídica, por ter uma norma de conflitos idêntica à nossa, também considere aplicável o seu Direito material. Mas pode suceder igualmente que esta ordem jurídica, por ter uma norma de conflitos diferente da nossa, não se considere competente e remeta para outra lei. Surge então o problema da devolução.
O problema é o seguinte: devemos aplicar a lei designada, mesmo que este não se considere competente, ou devemos ter em conta o DIP da lei designada?
Será que esta referência se dirige directa e imediatamente ao Direito material da lei designada ou será que, diferentemente, esta referência pode a abranger o DIP da lei designada?
Quando a referência se dirige directa e imediatamente ao Direito material da lei designada dizemos que a referência é uma referência material.
È global a referência que tem em conta o DIP da lei designada.
São três os pressupostos de um problema de devolução:
i) que a norma de conflitos do foro remeta para uma lei estrangeira;
ii) que a remissão possa não ser entendida como uma referência material;
iii) que a lei estrangeira designada não se considere competente.

Este terceiro pressuposto verifica-se quando a norma de conflitos estrangeira utiliza um elemento de conexão diferente da norma de conflitos do foro ou quando, embora utilizando o mesmo elemento de conexão, seja interpretada por forma diferente.

B) Tipos de devolução

A devolução pode apresentar-se como um retorno de competência ou uma transmissão de competência.
No retorno de competência, ou reenvio de primeiro grau, o Direito de Conflitos estrangeiro remete a solução da questão para o Direito do foro.
Na formulação destas hipóteses de devolução designamos a lei do foro como L1, a lei designada como L2, a lei designada por L2 como L3 e assim sucessivamente.
Na transmissão de competência, ou reenvio de segundo grau, o Direito de Conflitos estrangeiro remete a solução da questão para outro ordenamento estrangeiro.
Podemos ter retorno indirecto quando L2 remete para L3 com referência global e L3, por sua vez, devolve para o Direito do foro.
Podemos ter transmissão em cadeia quando L2 remete para L3 e esta lei também não se considere competente, devolvendo para uma quarta lei.
Pode ainda configurar-se uma transmissão com retorno, quando, por exemplo, L3 remeta para L2.

● Critérios gerais de solução

A) Tese da referência material

Segundo esta tese a referência feita pela norma de conflitos é sempre e necessariamente entendida como uma referência material, isto é como uma remissão directa e imediata para o Direito material da lei designada.
Não interessa o Direito de Conflitos da lei designada.
A tese da referência material contrapõe-se a qualquer sistema de devolução, a qualquer sistema em que se tenha em conta o Direito de Conflitos estrangeiro, ainda que este Direito de Conflitos não seja sempre e necessariamente aplicado.
Encontra-se consagrada, em matéria de obrigações contratuais, no art. 15º da Convenção de Roma sobre a Lei Aplicável às Obrigações Contratuais.

B) Teoria da referência global

Segundo esta teoria, a remissão da norma de conflitos para uma ordem jurídica estrangeira abrange sempre e necessariamente o seu Direito de Conflitos.
Embora as normas de conflitos tenham por função designar qual o Direito material competente, quando remetem para uma ordem jurídica estrangeira a designação das normas materiais aplicáveis não é feita directa e imediatamente, é antes feita indirectamente, com a mediação do Direito de Conflitos da ordem jurídica estrangeira.

C) Teoria da devolução simples

Segundo esta teoria a remissão da norma de conflitos do foro abrange as normas de conflitos da ordem estrangeira, mas entende-se necessariamente a remissão operada pela norma de conflitos estrangeira como uma referência material.
A devolução simples surge historicamente ligada ao favorecimento da aplicação do Direito do foro. Em Portugal, parece que foi sempre aplicada em casos de retorno.
Com efeito, a devolução simples leva a aceitar o retorno directo mesmo que L2 não aplique L1. Por exemplo, na situação de retorno directo entre dois sistemas que pratiquem devolução simples cada um aplica o seu próprio Direito.
A devolução simples também leva a aceitar a transmissão de competência para L3 mesmo que esta lei não seja aplicada por L2 nem sem se considere competente. Por exemplo, quando L1 e L2 pratiquem devolução simples e L3 remeta para L2 com referência material, L1 aplica L3, enquanto L2 e L3 aplicam L2.

D) Teoria da devolução integral, foreign court theory ou dupla devolução

Na devolução simples atende-se à norma de conflitos estrangeira, mas não se respeita o tipo de remissão feito pelo Direito de Conflitos estrangeiro.
Na devolução integral o tribunal do foro deve decidir a questão transnacional tal como ela seria julgada pelo tribunal do país da ordem jurídica designada.
Em princípio a devolução integral assegura que o tribunal de L1 aplicará a mesma lei e dará a mesma solução ao caso que o tribunal de L2. Garante a harmonia entre L1 e L2.
A grande novidade da devolução integral reside no seguinte: a norma de conflitos remete para a ordem estrangeira no seu conjunto, incluindo as próprias normas de L2 sobre a devolução. Assim, atende ao tipo de referência feito por L2.

E) Balanço

Assim, o sistema português parte de uma regra geral de referência material mas aceita a devolução em certos casos. Também uma parte das codificações mais recentes se mostra desfavorável à admissão geral do reenvio, mas não o exclui em determinadas hipóteses.
Por forma geral pode dizer-se que a devolução deve ser admitida como um mecanismo de correcção do resultado a que conduz no caso concreto a aplicação da norma de conflitos do foro, quando tal seja exigido pela justiça conflitual, em especial pelo princípio da harmonia internacional de soluções.

● O regime vigente

A) A regra geral da referência material

O art. 16º CC estabelece que a “referência das normas de conflitos a qualquer lei estrangeira determina apenas, na falta de preceito em contrário, a aplicação do direito interno dessa lei”.
Daqui resulta que a referência material é enunciada como regra geral. Mas não resulta a adopção da tese da referência material, visto que se admite “preceito em contrário”, isto é, que se aceite a devolução nos casos em que a lei o determine. Isto verifica-se desde logo nos arts. 17º, 18º, 36º/2 e 65º/1 in fine CC.

B) Transmissão de competência

O art. 17º permite sob certas condições a transmissão de competência. Nos termos do seu nº1 “Se, porém, o direito internacional privado da lei referida pela norma de conflitos portuguesa remeter para outra legislação e esta se considerar competente para regular o caso, é o direito interno desta legislação que deve ser aplicado”.
“Remeter” deve entender-se como “aplicar”. O que interessa é que L2 aplique uma terceira lei.
Por “direito interno” deve entender-se “direito material” vigente na ordem jurídica do sistema para que remete L2.
Os pressupostos da transmissão de competência são, portanto, dois:
i) que o Direito estrangeiro designado pela norma de conflitos portuguesa aplique outra ordem jurídica estrangeira;
ii) que esta ordem jurídica estrangeira aceite a competência.
È o que se verifica no caso da sucessão imobiliária de um francês que deixa imóvel situado em Inglaterra. A norma de conflitos portuguesa remete para o Direito francês a título da lei da última nacionalidade do de cuius; o Direito francês, por seu turno, submete a sucessão imobiliária à lex rei sitae, remetendo para o Direito inglês; o Direito inglês também submete a sucessão imobiliária à lex rei sitae e por isso, considera-se competente. Logo L2 aplica L3 e L3 considera-se competente.
A transmissão de competência também é de admitir num caso de transmissão em cadeia, em que L2 aplique L4 e L4 se considere competente. Esta hipótese não é directamente visada pelo texto do art. 17º/1, mas é abrangida pela sua ratio.
Isto é de admitir mesmo que uma lei instrumental fique em desarmonia, por exemplo, quando L2 aplicar L4, e L4 se considerar competente, mas L3 aplicar L3. Se não se atinge a harmonia com todas as leis do circuito alcança-se, pelo menos, a harmonia com L2 e com a lei aplicada por L2.
Logo é preferível dizer que os pressupostos são:
i) que L2 aplique Ln (pode ser L3, l4, etc);
ii) que Ln se considere competente.

Só podemos aplicar através da transmissão de competência uma lei que L2 aplique e que se considere competente.
Vejamos o seguinte exemplo: sucessão mobiliária de francês que falece com último domicílio na Alemanha. A norma de conflitos portuguesa remete para o Direito francês, a título de lei da última nacionalidade do de cuius; o Direito francês submete a sucessão mobiliária à lei do último domicílio do de cuius, remetendo por isso para o Direito alemão; o Direito alemão, por seu turno, regula a sucessão pela lei da última nacionalidade, remetendo para o Direito francês; como tanto os tribunais franceses como os alemães praticam devolução simples, o sistema francês aceita o retorno operado pela lei alemã, aplicando o seu direito, e o sistema alemão aceita o retorno operado pela lei francesa, aplicando o seu Direito; logo L2 aplica L2 e L3 aplica L3. Não há transmissão competência porque L2, apesar de remeter primariamente para L3, não aplica L3. Funciona a regra da referência material do art. 16º, nos termos da qual se deve aplicar a lei francesa.
A lei aplicada por L2 pode considerar-se directa ou indirectamente competente.
O art. 17º/2 determina o seguinte: “ Cessa o disposto no número anterior, se a lei referida pela norma de conflitos portuguesa for a lei pessoal e o interessado residir habitualmente em território português ou em país cujas normas de conflitos consideram competente o Direito interno do Estado da sua nacionalidade”.
Este preceito aplica-se em matéria de estatuto pessoal. Nesta matéria, a transmissão de competência, estabelecida nos termos do nº1, cessa em duas hipóteses:
i) o interessado tem residência habitual em Portugal;
ii) o interessado tem residência habitual noutro Estado que aplica o direito material do Estado da nacionalidade.

Uma primeira dificuldade de interpretação deste preceito surge quando a lei pessoal não for a lei da nacionalidade.
A 2ª parte do art. 17º/2 revela que o legislador representou L2 como sendo a lei da nacionalidade.
Em princípio L2 tem de ser a lei da nacionalidade chamada a reger matéria do estatuto pessoal.
Outra dificuldade é determinar o interessado. Deve entender-se que é interessado aquele que desencadeou o funcionamento do elemento de conexão que designou L2. Por exemplo, na sucessão o interessado é o de cuius.
A 2ª parte do art. 17º/2 releva quando o interessado tem residência habitual noutro Estado que aplica a lei da nacionalidade.
Nestas circunstâncias a harmonia internacional não justifica o abandono da conexão julgada mais adequada para reger o estatuto pessoal, a lei da nacionalidade. Por isto cessa a devolução e aplicamos a lei da nacionalidade.
Esta explicação da ratio do preceito é, em linhas gerais, de aceitar. Observe-se apenas que o art. 17º/2 também faz cessar a devolução quando L3 for a lei do domicílio, se este não coincidir com a residência habitual, e a lei da residência habitual aplicar a lei da nacionalidade.
Em certos casos, porém, o art. 17º/3 vem repor a transmissão de competência. Assim como o art. 17º/2 só se aplica quando há transmissão de competência face ao art. 17º/1, o art. 17º/3 só se aplica quando antes se tenham verificado as previsões das normas contidas nos nº 1 e 2.
São quatro os pressupostos de aplicação deste preceito:
i) que se trate de uma das matérias nele indicadas;
ii) que a lei da nacionalidade aplique a lex rei sitae;
iii) que a lex rei sitae se considere competente;
iv) que se verifique um dos casos de cessação da transmissão de competência previsto no nº2.

Nos termos do art. 17º/3, o Direito de Conflitos português admite abandonar o seu critério de conexão, para assegurar a efectividade das decisões dos seus tribunais, quando o Direito da nacionalidade estiver de acordo na aplicação da lex rei sitae.

C) Retorno

O art. 18º CC vem admitir, sob certas condições, o retorno de competência. O art. 18º/1 estabelece que se “ o DIP da lei designada pela norma de conflitos devolver para o direito interno português, é este o direito aplicável”.
O retorno de competência depende, pois, em princípio de um único pressuposto: que L2 aplique o Direito material português.
Se L2 remete para o direito português, mas não aplica a lei portuguesa, não aceitamos o retorno.
Por exemplo, a sucessão mobiliária de um francês com último domicílio em Portugal. A norma de conflitos portuguesa remete para a lei francesa como a lei da última nacionalidade do de cuius; a lei francesa submete a sucessão mobiliária á lei do último domicílio, razão por que remete para a lei portuguesa; mas, como pratica devolução simples, aceita o retorno operado pela lei portuguesa e considera-se competente. Como L2 não aplica L1, não aceitamos o retorno, e aplicamos L2, nos termos do art. 16º.
Por forma geral, pode dizer-se que nunca aceitamos o retorno directo operado por um sistema que pratica devolução simples.
O retorno pode ser indirecto. O que interessa é que L2 aplique o Direito material português. Assim, L2 remete para L3, com devolução simples, e L3 remete para o Direito português, L2 aplica o Direito material português.
Também neste caso é de admitir o retorno mesmo que uma lei instrumental fique em desarmonia, por não aplicar o Direito material português. Com efeito, a harmonia com L2 é mais importante que a harmonia com L3.
Maiores dificuldades suscita a hipótese de L2 não remeter directa e imediatamente para o direito material português, mas condicionar a resposta ao sistema de devolução português.
Mas há razões de fundo para não aceitarmos neste caso o retorno: o retorno não é necessário para haver harmonia: se nós aplicarmos L2, L2 considera-se competente. Não se justifica sacrificar o nosso critério de conexão.
Noutros casos em que L2 não remete incondicionalmente para o direito material português, dificilmente o retorno poderá ser aceite, porquanto, em princípio, não será condição necessária ou condição suficiente para haver harmonia com L2.
O retorno também é limitado em matéria de estatuto pessoal.
Com efeito, o art. 18º/2 estabelece o seguinte: “Quando, porém, se trate de matéria compreendida no estatuto pessoal, a lei portuguesa só é aplicável se o interessado tiver em território português e a sua residência habitual ou se a lei do país desta residência considerar igualmente competente o Direito interno português”.
Este preceito só se aplica quando há retorno nos termos do nº 1.
Em matéria de estatuto pessoal, o retorno só é aceite em duas hipóteses:
i) quando o interessado tem residência habitual em Portugal;
ii) quando o interessado tem residência habitual num Estado que aplica o direito material português.

D) O favor negotti como limite à devolução

È o seguinte o teor do art. 19º/1 CC: “ Cessa o disposto nos dois artigos anteriores, quando da aplicação deles resulte a invalidade ou a ineficácia de um negócio jurídico que seria válido ou eficaz segundo a regra fixada no art. 16º, ou a ilegitimidade de um estado que de outro modo seria legítimo”.
Neste preceito o favor negotti paralisa a devolução.
O preceito tem enorme alcance: sempre que haja devolução por força dos arts. 17º ou 18º esta devolução é paralisada se L2 for mais favorável à validade do negócio ou á legitimidade de um estado que a lei aplicada através da devolução.
Para Ferrer Correia e Baptista Machado o art. 19º/1 só seria aplicável às situações já constituídas – e não à sua constituição em Portugal com a intervenção de uma autoridade pública – e desde que a situação esteja em contacto com a ordem jurídica portuguesa ao tempo da sua constituição.
Não posso concordar com esta doutrina. Ora, tudo indica que o legislador quis dar primazia ao princípio do favor negotti relativamente à harmonia internacional.

E) Casos em que não é admitida a devolução

A devolução não é admitida quando a remissão é feita pelo elemento de conexão designação pelos interessados, utilizado mormente nos arts. 34º e 41º CC.
Com efeito o nº2 do art. 19º determina que “Cessa igualmente o disposto nos mesmos artigos, se a lei estrangeira tiver sido designada pelos interessados, nos casos em que a designação é permitida”.
Em rigor não se trata e fazer cessar ou paralisar a devolução. Não se aplicam os arts. 17º e 18º CC dada a natureza do elemento de conexão.
A devolução também não é admitida em matéria de obrigações contratuais. O art. 15º da Convenção de Roma sobre a Lei Aplicável às Obrigações Contratuais exclui o reenvio.
Nem o art. 19º/2 CC nem o art. 15º da Convenção de Roma excluem que as partes designem como aplicável um sistema globalmente considerado, incluindo o respectivo Direito de Conflitos.
Outras matérias em que a devolução não é admitida por convenções internacionais de unificação do Direito de Conflitos são as obrigações alimentares, a representação voluntária e os “contratos de mediação”.

F) Regimes especiais de devolução

No CC, encontramos disposições especiais sobre devolução em matéria de forma, nos arts. 36º/2 e 65º/1 in fine.
Aqui o favor negotti actua como fundamento autónomo de devolução. O nº1 do art. 36º contém uma conexão alternativa, que abre a possibilidade de o negócio obedecer à forma prescrita por uma das duas leis aí indicadas. O nº 2 cria uma terceira possibilidade: a observância da forma prescrita pela lei para que remete a norma de conflitos da lei do lugar da celebração.
Não se exige que L3 se considere competente. Está aqui a grande diferença com o regime contido no nº1 do art. 17º CC.
Tem-se entendido que o art. 36º/2 adopta um sistema de devolução simples. O que ficou exposto quanto ao art. 36º/2 aplica-se à hipótese de devolução admitida pelo art. 65º/1 in fine. Aqui a devolução vem abrir uma quarta possibilidade para salvar a validade formal de uma disposição por morte.

G) Caracterização do sistema de devolução

São três as características do sistema:
1) Primeiro, a regra geral é a da referência material. Isto decorrer não tanto dos pressupostos da devolução enunciados nos n º 1 dos arts. 17º e 18º CC mas dos limites colocados à devolução pelos seus nº 2, em matéria de estatuto pessoal, e pelo art. 19º CC.
2) Segundo, os arts. 17º e 18º contêm regras especiais, que admitem a devolução, configurando um sistema de devolução sui generis, visto que não corresponde á devolução simples nem à devolução integral. No entanto, parece mais próximo na sua inspiração da devolução integral, visto que a devolução depende sempre do acordo com L2.
3) Terceiro, em matéria de forma do negócio jurídico admite-se a transmissão de competência para uma lei que não esteja disposta a aplicar-se para obter a validade formal do negócio (arts. 36º e 65º).

H) Apreciação crítica

À semelhança da devolução integral promove a harmonia com L2, mas mostra-se superior à devolução integral porquanto evita o círculo vicioso em caso de retorno directo por parte de um Direito que faça devolução integral ou tenha um sistema de devolução semelhante ao nosso e faz depender a transmissão de competência da harmonia com a lei aplicada por L2.

remissão para ordenamentos juridicos complexos

Caracterização do problema

Os ordenamentos jurídicos complexos suscitam ao DIP dois problemas:
i) Quando é que a norma de conflitos remete para o ordenamento jurídico complexo?
ii) Supondo que a norma de conflitos remete para o ordenamento jurídico complexo, como se determina, entre os vários sistemas que nele vigoram, o aplicável ao caso?

Os textos legislativos a considerar são o art. 20º CC, art. 19º/1 da Convenção de Roma sobre a Lei Aplicável às Obrigações Contratuais e o art. 19º da Convenção de Haia sobre a Lei Aplicável aos Contratos de Mediação e à Representação.

● Princípios gerais de solução. O regime vigente

A) Quando é que a norma de conflitos remete para o ordenamento jurídico complexo no seu conjunto?

A primeira questão que se coloca é a de saber quando é que a norma de conflitos remete para a ordem jurídica complexa no seu conjunto e quando é que remete directamente para um dos sistemas que nela coexistem.
O art. 20º CC só se refere à remissão feita pelo elemento de conexão nacionalidade. Não responde, por exemplo, à questão saber qual a lei reguladora do estatuto pessoal de um apátrida com residência habitual em Londres mas que é considerado domiciliado na Escócia.
Como proceder quando o elemento de conexão seja a residência habitual, o domicílio, o lugar da celebração, o lugar do delito, o lugar da situação da coisa, etc?.
Há duas posições.
Para Ferrer Correia entende que quando o elemento de conexão aponta directamente para determinado lugar no espaço será competente o sistema em vigor neste lugar.
Isabel de Magalhães Collaço defende que a remissão da norma de conflitos é feita, em princípio, para o ordenamento do Estado soberano.
A segunda posição parece-me de preferir.

B) Como determinar, de entre os sistemas que vigoram no ordenamento jurídico complexo, o aplicável?

Os princípios que orientam a determinação do sistema aplicável, dentro do ordenamento complexo, são dois:
- pertence ao ordenamento jurídico complexo resolver os conflitos de leis internos e, por isso, determinar qual o sistema interno aplicável;
- se, porém, o ordenamento complexo não resolver o problema, deve aplicar-se de entre os sistemas que vigoram no âmbito do ordenamento complexo, o que tem uma conexão mais estreita com a situação a regular.
Vejamos como estes princípios se concretizam quando a remissão para o ordenamento jurídico complexo é feito pelo elemento de conexão nacionalidade.
Comece-se pelos ordenamentos complexos de base territorial.
Em conformidade com o primeiro princípio, o nº1 do art. 20º CC determina que pertence ao ordenamento complexo ficar o sistema interno aplicável.
Na falta de Direito Interlocal unificado, o nº 2 do art. 20º presume analogia com o DIP e prescreve o recurso ao DIP unificado.
E se também não houver DIP unificado? O nº2 do art. 20º manda atender à lei da residência habitual.
Esta parte do preceito suscita divergências de interpretação.
Para Isabel de Magalhães Collaço só releva a residência habitual dentro do Estado da nacionalidade.
Para a Escola de Coimbra aplica-se a lei da residência habitual mesmo que esta se situe fora do Estado da nacionalidade.
Para Isabel de Magalhães Collaço há uma lacuna descoberta através de interpretação restritiva do art. 20º/2 in fine. A função deste preceito é indicar o sistema aplicável de entre os que integram o ordenamento complexo. Como este preceito não fornece um critério para determinar o sistema aplicável quando a residência habitual se situa fora do Estado da nacionalidade, surge uma lacuna. Esta lacuna deve ser integrada com recurso ao princípio da conexão mais estreita.
Creio ser este o melhor entendimento.
Por conseguinte, em matéria de estatuto pessoal, devemos aplicar, de entre os sistemas que integram o ordenamento complexo, aquele com que a pessoa está mais ligada. Neste sentido também pode invocar-se a analogia com o disposto no art. 28º da Lei da Nacionalidade, relativo ao concurso de nacionalidades.
Para os ordenamentos complexos de base pessoal o art. 20º/3 também consagra o princípio de que pertence ao ordenamento complexo determinar o sistema pessoal competente.
Assim, são aplicáveis as normas de Direito Interpessoal da ordem jurídica designada, incluindo tanto as normas de conflitos interpessoais como as normas de Direito material como, por exemplo, as que regulam o casamento entre pessoas de religião diferente.
Passe-se agora à determinação do sistema aplicável quando a remissão para o ordenamento complexo é operado por um elemento de conexão que não seja a nacionalidade. Este caso não é contemplado pelo art. 20º razão por que, seguindo-se o entendimento de Isabel de Magalhães Collaço, há uma lacuna.
Esta lacuna deve ser integrada por aplicação analógica do art. 20º. Quer isto dizer que, no caso de remissão para um ordenamento complexo de base territorial de deve sempre atender ao Direito Interlocal e ao DIP unificados de que o ordenamento complexo disponha.
Por exemplo, ao estatuto pessoal de um apátrida com residência habitual num Estado com ordem jurídica complexa, que dispõe de Direito Interlocal unificado, é aplicável o sistema local que for indicado por este Direito Interlocal.
Como proceder se não houver Direito Interlocal nem DIP unificados? Nestes casos há que entender a remissão operada pela norma de conflitos como uma remissão para o sistema local.
No caso de remissão para um ordenamento complexo de base pessoal operada por um elemento de conexão que não seja a nacionalidade deve sempre atender-se, por aplicação analógica do art. 20º/3 CC, às normas de Direito Interpessoal da ordem jurídica designada. Na falta de normas de Direito Interpessoal que resolvem o problema deve ser aplicado o sistema com o qual a situação a regular tem uma conexão mais estreita.

elemento de conexão

● Princípios gerais de interpretação e aplicação

A) Generalidades

Por razões pedagógicas importa distinguir dois momentos na interpretação e aplicação do elemento de conexão: a interpretação e a concretização.
Na interpretação trata-se da determinação do conteúdo do conceito que designa o elemento de conexão. Por exemplo, o que se deve entender por nacionalidade enquanto elemento de conexão.
A concretização diz respeito à determinação do laço em que se traduz o elemento de conexão. Por exemplo, qual o estado de que António é nacional.

B) Interpretação

Foi atrás assinalado que, do ponto de vista da interpretação, há uma diferença relativa entre os conceitos técnico – jurídicos e os conceitos fácticos.
Foi atrás sublinhado que a norma de conflitos deve ser interpretada no contexto do sistema a que pertence, mas também com autonomia relativamente ao Direito vigente neste sistema.

C) Concretização

1) Problemas de concretização. Na concretização do elemento de conexão surgem duas ordens de problemas. A primeira diz respeito aos casos de conteúdo múltiplo e de falta de conteúdo. A segunda à concretização no tempo do elemento de conexão.

2) Conteúdo múltiplo e falta de conteúdo. Há um problema de conteúdo quando no caso concreto há vários laços, que se estabelecem com diferentes Estados, reconduzíveis ao mesmo conceito designativo. Por exemplo, quando uma pessoa tem dupla nacionalidade.
Na hipótese inversa, de falta de conteúdo, não existe no caso concreto o laço designativo. Por exemplo, quando uma pessoa é apátrida.
Vejamos quais os critérios de resolução destes problemas.
O problema do conteúdo múltiplo pode ser resolvido por uma norma especial. É o que se verifica com a nacionalidade. Os arts. 27º e 28º da Lei da Nacionalidade estabelecem critérios de resolução dos concursos de nacionalidades.
Nos termos do art. 27º se uma das nacionalidades for a portuguesa é esta que prevalece.
Por força do art. 28º, em caso de concurso de duas ou mais nacionalidades estrangeiras releva apenas a nacionalidade do Estado em cujo território o plurinacional tenha a sua residência habitual. Se não tiver residência habitual num dos Estados de que é nacional, releva a nacionalidade do estado com que mantenha a vinculação mais estreita.
Manifesta-se aqui o princípio da nacionalidade efectiva.
Levanta-se a questão de saber se o art. 28º também se aplica quando uma das nacionalidades estrangeiras for a de um Estado comunitário. No Ac. Micheletti, o TCE (7/7/ 92) entendeu que para efeitos de direito de estabelecimento a nacionalidade relevante é sempre a do Estado comunitário. Valerá isto para outros efeitos, designadamente para a aplicação das normas de Conflitos? Marques dos Santos entende que sim. Este entendimento parece de seguir.
Passe-se agora ao problema da falta de conteúdo. Quando se conclui pela falta de conteúdo concreto do elemento de conexão há que atender, em primeiro lugar, à norma especial que resolve o problema.
Assim, o art. 32º/1, 1ª parte CC determina que a lei pessoal do apátrida é a do lugar onde tiver a residência habitual. E se o apátrida não tiver residência habitual? O nº2 do mesmo artigo resolve o problema, remetendo para o nº 2 do art. 82º CC. De onde decorre que releva a residência ocasional e, se esta faltar, até o simples paradeiro.
Não havendo norma especial que resolva o problema há que atender ao critério geral estabelecido pelo art. 23º/2, 2º parte CC, que manda recorrer à lei que for subsidiariamente competente. Na falta de conexão subsidiária resta o recurso ao Direito material do foro, por aplicação analógica do disposto no art. 348º/3 CC.
Hipótese algo diversa, que se pode configurar, é a de o conteúdo concreto do elemento de conexão ser incerto. Por exemplo, não se consegue apurar ao certo se um indivíduo tem ou não a nacionalidade de determinado Estado. Se for possível determinar que o indivíduo tem a nacionalidade de outro Estado, deverá aplicar-se a lei deste Estado. Caso contrário, entendo que são aplicáveis as soluções que foram expostas para o caso de falta de conteúdo concreto do elemento de conexão.

3) Concretização no tempo. O problema da concretização no tempo é colocado pelos elementos de conexão móveis que são, como já foi assinalado, aqueles cujo conteúdo concreto é susceptível de ser alterado no tempo.
Com a alteração do conteúdo concreto do elemento de conexão surge uma sucessão de estatutos ou conflitos móvel.
Em matéria de sucessão de estatutos há duas teses fundamentais. Para uma primeira tese há analogia entre a sucessão de estatutos e o conflito de leis no tempo e, por conseguinte, são aplicáveis analogicamente as regras gerais do Direito Intertemporal.
Para outros autores não é possível formular regras gerais em matéria de sucessão de estatutos. Para a solução dos problemas de sucessão de estatutos deve recorrer-se a uma interpretação da norma de conflitos que suscita o problema.
A sucessão de estatutos não se confunde com a sucessão de leis no tempo.
Na sucessão de leis no tempo temos a substituição de uma lei por outra lei dentro da mesma ordem jurídica. A vigência da lei antiga é condicionada pela entrada em vigor da lei nova.
Na sucessão de estatutos estamos na presença de duas ordens jurídicas vigentes. O que muda é a situação da vida: há um “deslocamento” da situação da vida relativamente aos Estados em presença, que leva a que o laço, considerado relevante para designar o Direito aplicável, se passe a estabelecer com o Estado diferente.
Tudo sopesado, pode admitir-se uma certa analogia entre os critérios valorativos que presidem à escolha do momento relevante da conexão e os que fundamentam as soluções do Direito Intertemporal, bem como no que toca á salvaguarda da continuidade das situações jurídicas constituídas.
Mas a aplicação analógica de regras gerais de Direito Intertemporal terá como limite a compatibilidade dos resultados a que conduz com as finalidades prosseguidas pela norma de conflitos em causa e com os princípios gerais do Direito de Conflitos que ela integra.
Na resolução dos problemas de sucessão de estatutos importa distinguir dois aspectos. O primeiro aspecto é a determinação do momento relevante da conexão. Em certos casos o legislador fixou o momento relevante, quanto à constituição da filiação (art. 56º/1). O legislador também fixou o momento relevante da conexão quanto à lei reguladora da sucessão por morte (art. 62º).
O problema da sucessão de estatutos não se resume à determinação do momento relevante da conexão. Também pode ser necessário conjugar os estatutos em presença, sobretudo com respeito ás situações jurídicas constituídas.
Nesta matéria a doutrina internacional privatista tem afirmado, á face dos diferentes sistemas locais de DIP, a existência de um princípio da continuidade das situações jurídicas preexistentes.
Assim, a situação validamente constituída sob o império do estatuto anterior deve persistir em caso de mudança de estatuto, a menos que se lhe oponham razões suficientemente poderosas.

● A nacionalidade dos indivíduos, o domicílio e a residência habitual

A) A nacionalidade dos indivíduos

A nacionalidade dos indivíduos tem relevância da determinação do seu estatuto pessoal, como elemento de conexão primário nos termos do art. 31º/1 CC e, enquanto nacionalidade comum, em matéria de relações de família (por exemplo, arts 52º e 53º CC).
Fora do estatuto pessoal a nacionalidade comum releva em matéria de responsabilidade extracontratual, nos termos do art. 45º/3 CC. Nem sempre, portanto, a lei da nacionalidade é a lei pessoal.
Quanto à interpretação deste elemento de conexão, há que partir da noção geral de nacionalidade como vínculo jurídico – positivo que une uma pessoa a um Estado.
Mas este vínculo pode assumir diferentes significados.
Atendendo á função da norma de conflitos, a nacionalidade relevante para o Direito de Conflitos português é a nacionalidade do Estado soberano (seja ela a nacionalidade primária ou secundária).
Passando agora á concretização do elemento de conexão, surgem teoricamente duas possibilidades: a concretização lege fori, mediante a aplicação do Direito do foro e a concretização lege causae, mediante a aplicação do direito do estado cuja nacionalidade está em causa.
Aqui impõe-se referir o princípio, de DIPúblico geral, da liberdade dos Estados na determinação dos seus nacionais. Decorre deste princípio que a nacionalidade se tem de estabelecer segundo o Direito do Estado cuja nacionalidade está em causa. A concretização faz-se portanto, lege causae.
Resta fazer uma referência à questão prévia de DIP suscitada na determinação da nacionalidade.
Vejamos o exemplo: uma portuguesa casa com um espanhol, na forma civil, em Lisboa, durante a vigência da anterior Lei da Nacionalidade (Lei nº 2098 de 29/7/59). Por força desta lei perdia a nacionalidade portuguesa a mulher que adquirisse pelo casamento a nacionalidade estrangeira do marido. Seria este caso se o casamento fosse válido perante a ordem jurídica espanhola. Mas a lei espanhola sujeitava todos os espanhóis católicos à celebração do casamento segundo o rito católico, sob pena de irrelevância. Por conseguinte, o casamento era considerado inválido perante a ordem jurídica espanhola e ela não adquiria a nacionalidade espanhola. Continuava a ser portuguesa, apesar de à face do DIP português, por força da ordem pública internacional, o casamento ser considerado válido.

B) Domicílio

O elemento de conexão, enquanto entendido como vínculo jurídico entre uma pessoa e um lugar situado num determinado espaço territorial, tem um papel reduzido no nosso Direito de Conflitos.
Em matéria de estatuto pessoal, é a lei da residência habitual – e não a do domicilio – a conexão subsidiária geral na falta de nacionalidade.
O elemento de conexão domicílio releva em três casos:
1) para a determinação da lei pessoal do apátrida menor, enquanto domicílio legal (art. 32º/1, 2º parte CC);
2) para a determinação da lei pessoal dos refugiados políticos, nos termos do art. 12º/1 da Convenção de Genebra Relativa ao Estatuto dos Refugiados;
3) em matéria de representação voluntária, enquanto domicílio profissional (art. 39º/3 CC).

No conceito de domicílio, quando utilizado em normas de conflitos de fonte interna, devem incluir-se uma nota objectiva de permanência num determinado lugar e uma nota subjectiva de intenção de aí permanecer.
No que se refere à concretização do elemento de conexão domicílio também surge aqui a alternativa entre uma concretização lege fori e uma concretização lege causae.
Para a primeira tese o domicílio determina-se sempre segundo as regras do Direito do foro. A segunda tese manda atender á lei do Estado em cujo território se situa o domicílio em causa.
Por isso, em tese geral, deve preferir-se a concretização lege causae do elemento de conexão domicílio, designadamente em matérias de estatuto pessoal, em que a estabilidade é particularmente importante.
È a solução que deve valer para o domicílio legal utilizado no art. 32º/1 CC. O art. 85º CC só deve ser aplicado quando está em causa o domicílio legal em Portugal.
O nº5 do art. 85º determina que não “são aplicáveis as regras dos números anteriores se delas resultar que o menor ou interdito não tem domicílio em território nacional”. Este preceito pode suscitar algumas dúvidas de interpretação. Deve entender que neste caso há que recorrer ás regras aplicáveis ao domicílio das pessoas capazes (art. 82º). Logo o menor terá domicílio legal em Portugal quando for aqui residente habitualmente, mesmo que ao pais residam no estrangeiro.
Já quanto ao domicílio profissional do art. 39º/3 CC poderá admitir-se uma concretização lege fori.
Quer isto dizer que para estabelecer o domicílio profissional, em Portugal ou no estrangeiro, será aplicável o disposto no art. 83º CC.

C) Residência habitual

A residência habitual é o elemento de conexão subsidiário geral em matéria de estatuto pessoal. Encontra-se estabelecido, para os apátridas, no art. 32º/1 CC e, enquanto residência habitual comum, na falta de nacionalidade comum, nos arts 52º/2, 53º/2, 54º, 56º/2, 57º e 60/3 CC.
Observe-se que a residência habitual comum é a residência habitual no mesmo Estado soberano. È um conceito específico de Direito de Conflitos.
Este elemento de conexão também surge no já referido art. 31º/2 CC.
Fora do estatuto pessoal este elemento de conexão surge relativamente ao valor negocial de um comportamento, enquanto residência habitual comum do declarante e do destinatário, no art. 35º/2 e 3 CC; em matéria de representação voluntária, no art. 39º/2 CC; em matéria de obrigações voluntárias, no art. 42º/1 CC; em responsabilidade extracontratual, no art. 45º/3 CC.
Relativamente ao art. 53º/2 in fine CC é questionável se a “primeira residência conjugal” tem de ser uma residência habitual ou pode ser uma residência ocasional.
Em todo o caso, não vale como primeira residência conjugal a localização temporária ou mesmo acidental dos cônjuges num determinado país que aí tenham organizado a sua vida.
Por residência é de entender o centro da vida pessoal do indivíduo (independentemente de uma autorização de residência). O conceito de residência já contém uma nota de permanência. Mas a residência pode ser ocasional, caso em que há um centro de vida que, embora dotado de certa permanência, é temporário.
Um indivíduo pode ter mais de uma residência habitual, dando azo a um problema de conteúdo múltiplo. Neste caso deve relevar a residência habitual do Estado a que o indivíduo esteja mais estreitamente ligado.
Na falta de residência habitual manda-se atender no caso dos apátridas á residência ocasional (art. 32º/2 CC).

● Outros elementos de conexão

A) A sede da pessoa colectiva

Este elemento de conexão é o relevante para a determinação da lei pessoal das pessoas colectivas. Surge no art. 33º CC e no art. 3º/1, 1ª parte CSC, enquanto sede principal e efectiva da administração. Mas a sede estatutária também releva em matéria de sociedade comercial (art. 3º/1, 2ª parte CSC).

B) O lugar da celebração

O elemento de conexão lugar da celebração é utilizado, em matéria de forma do negócio jurídico, nos arts. 36º (norma geral), 50º e 51º (casamento) e 65º CC (disposições por morte). Foi também acolhido relativamente ás obrigações voluntárias no art. 42º/2.

C) A designação pelo interessado ou interessados

A designação pelas partes é o elemento de conexão primário em matéria de obrigações voluntárias, como decorre do art. 3º da Convenção de Roma sobre a Lei Aplicável às Obrigações Contratuais, do art. 41º CC.

D) O lugar da situação da coisa

O lugar da situação da coisa é o principal elemento de conexão em matéria de posse e direitos reais. É o que resulta do art. 46º/1 e 2 CC.
O lugar da situação da coisa também é utilizado em matéria de capacidade para constituir direitos reais sobre imóveis, e para dispor deles, nos termos do art. 47º CC.
O lugar da situação da coisa releva no domínio da representação voluntária, quando esta se refira à disposição ou administração de bens imóveis, nos termos do art. 39º/4 CC.

E) O lugar da actividade causadora do prejuízo

O lugar da actividade causadora do prejuízo é utilizado em matéria de responsabilidade extracontratual (art. 45º/1 CC), correspondendo, na formulação mais tradicional, ao lugar do delito.

F) Outros elementos de conexão

No nosso sistema de Direito de Conflitos surgem ainda outros elementos de conexão, designadamente, o lugar do comportamento negocial, quanto ao valor negocial do comportamento (art. 35º/2 CC); o lugar da recepção da proposta, quanto ao valor negocial do silêncio (art. 35º/3 CC); o lugar onde são exercidos os poderes representativos, em matéria de representação voluntária (art. 39º/1 CC); o lugar da actividade do gestor de negócios (art. 43º CC); o lugar da produção do efeito lesivo, em matéria de responsabilidade extracontratual (art. 45º/2 CC); o lugar onde a matrícula tiver sido efectuada no que se refere aos direitos sobre meios de transporte (art. 46º/3 CC).

elementos da norma de conflitos e interpretação

Elementos da norma de conflitos

A) Previsão da norma de conflitos

1) Objecto da norma de conflitos. A previsão da norma de conflitos define os pressupostos de cuja verificação depende a sua aplicação. Através destes pressupostos, a previsão da norma delimita o seu objecto.
O objecto da norma de conflitos é a situação transnacional. As normas de conflitos do tipo utilizado no Direito Conflitos de fonte interna delimitam as situações da vida através de conceitos técnico – jurídicos que atendem ao conteúdo típico e a notas funcionais.
Por exemplo, a norma de conflitos do art. 25º CC reporta-se a “estado”, “capacidade”, “relações de família”, “sucessões por morte”; a norma do art. 46º CC a “posse”, “propriedade” e “direitos reais”.
Assim, as normas de conflitos deste tipo determinam a aplicação de certa ordem local a uma categoria de situações ou a uma dada questão parcial, por exemplo, a capacidade.
Importa pois que a previsão de uma norma de conflitos compreenda aquelas situações, e só aquelas, para quais, segundo o juízo de valor legislativo, é adequada a conexão.

2) O fenómeno do dépeçage e as suas implicações. Muitas normas de conflitos não se reportam a situações típicas globalmente consideradas mas apenas a certos aspectos parcelares – por exemplo, as normas de conflitos que se reportam à capacidade negocial ou á forma do negócio jurídico.
Estas normas reportam-se a questões parciais. Por exemplo, a norma de conflitos contida no art. 36º não regula o negócio jurídico na sua globalidade, mas apenas os requisitos de validade formal.
Este fenómeno de fraccionamento das situações transnacionais pelo Direito de Conflitos é geralmente designado como dépeçage.
O dépeçage vem realçar a função reguladora do direito de Conflitos. Em regra, a globalidade da disciplina de uma concreta relação da vida internacional só pode ser definida por uma actuação de uma pluralidade de normas de conflitos. Acresce que, por vezes, a mesma norma de conflitos admite o chamamento de mais de um Direito para reger diferentes questões, como se verifica em matéria de obrigações voluntárias.
O depeçage traz consigo o risco de contradições normetivas ou valorativas, ou de dessintonias, entre as proposições jurídicas que são pedidas a diferentes ordens jurídicas. Este risco é tanto maior quanto mais vasto for o alcance da previsão da norma de conflitos.
A preservação da harmonia material exige então do DIP a reconstrução da unidade e coerência perdidas com o fraccionamento do Direito aplicável, mediante a conjugação dos diferentes estatutos. Para o efeito, as normas de conflitos têm de desempenhar uma função modeladora do resultado material, que pode passar nomeadamente por uma adaptação.


B) Estatuição

1) A estatuição da norma de conflitos. A estatuição da norma de conflitos, a consequência jurídica que desencadeia, é tradicionalmente identificada com a conexão. A conexão é o chamamento de um ou mais Direitos para regularem a questão.
Pode todavia pensar-se que à dupla função técnico – jurídica da norma de conflitos corresponde uma dupla consequência jurídica ou, com mais rigor, uma consequência jurídica complexa.
Por um lado a norma de conflitos remete para um Direito. Esta remissão é geralmente feita através de uma conexão, mas como já sabemos que nem todas as normas de conflitos são normas de conexão, é preferível designar esta primeira consequência por remissão.
Um segundo problema, que se coloca tanto quando a remissão é feita para o Direito estrangeiro como quando é feita para o Direito do foro, diz respeito ao alcance material da remissão.
O conjunto de proposições jurídico – materiais que são chamadas por uma norma de conflitos é geralmente designado por “estatuto”. Em certos casos a palavra “estatuto” também pode designar o conjunto de proposições jurídico – materiais que são chamadas pelas várias normas de conflitos que regulam âmbito de matérias.

2) Modalidades de conexão em geral. A conexão pode ser singular ou plural.
A conexão é singular quando, em resultado, desencadeia a aplicação de um só Direito para reger a situação.
É plural quando, em resultado, desencadeia a aplicação de mais de um Direito para regular a questão.
A conexão singular subdivide-se em simples, subsidiária, alternativa e optativa.
Na conexão singular simples a norma de conflitos designa por forma directa e imediata um único Direito aplicável à questão. É exemplo a norma de conflitos do art. 46º/1 CC.
Na conexão singular subsidiária a norma de conflitos dispõe de uma série de elementos de conexão que operam em ordem sucessiva, por forma a que a actuação do elemento de conexão seguinte depende da falta de conteúdo concreto do elemento de conexão anterior.
A norma de conflitos que resulta da conjugação dos arts. 25º, 31º e 32º CC, as matérias do estatuto pessoal são em princípio reguladas pela lei da nacionalidade; na falta de nacionalidade pela lei da residência habitual; e na falta de residência habitual, pela lei da residência ocasional.
Na conexão singular alternativa a norma de conflitos contém dois ou mais elementos de conexão, susceptíveis de designarem dois ou mais Direitos, sendo efectivamente aplicado aquele que, no caso concreto, se mostrar mais favorável à produção de determinado efeito jurídico. È o que se verifica, por exemplo, no art. 36º CC.
Na conexão singular optativa a norma de conflitos também dispõe de dois ou mais elementos de conexão, susceptíveis de designarem dois ou mais Direitos, mas é agora a vontade de uma determinada categoria de interessados que vai determinar o Direito efectivamente aplicável. Esta modalidade de conexão é de rara verificação.
Um exemplo no art. 5º do regime jurídico dos acidentes de trabalho e das doenças profissionais (Lei nº 100/97 de 13/9). Combina-se aqui uma remissão condicionada com uma conexão optativa: se a lei do país onde ocorreu o acidente reconhecer o direito à reparação, a aplicação desta lei ou da lei portuguesa vai depender da opção do trabalhador.
A conexão plural pode assumir duas modalidades: cumulativa simples e condicionante.
Na conexão cumulativa simples a norma de conflitos exige, para que se produza certo efeito jurídico, a concorrência de dois ou mais Direitos; o efeito tem de ser desencadeado ou reconhecido simultaneamente por dois ou mais Direitos.
Por exemplo, a norma de conflitos contida no art. 33º/3 CC. A manutenção da personalidade jurídica da pessoa colectiva depende da concorrência de duas leis diferentes.
A conexão cumulativa simples apresenta-se como simétrica relativamente à conexão alternativa
A conexão plural condicionante difere da cumulativa simples porque não há uma atribuição de competência paritária a dois ou mais Direitos. A norma de conflitos chama um Direito como primariamente competente, mas atribui a outro sistema uma função limitativa ou condicionante quanto à produção de certo efeito.
Por exemplo, o art. 60º CC, nº 1 ou 2 definem o Direito primariamente competente para a constituição da filiação adoptiva que é a lei pessoal do adoptante, ou, se a adopção for realizada por marido e mulher ou o adoptando for filho do cônjuge do adoptante, sucessivamente, a lei nacional comum dos cônjuges, a lei da sua residência habitual comum ou a lei do país com a qual a vida familiar se ache mais estreitamente conexa.
Como a cumulativa simples, também a conexão condicionante pode resultar de um juízo de valor desfavorável relativamente à produção de certo efeito.
Segundo um outro critério, as conexões podem classificar-se em autónomas ou dependentes. Em regra as conexões são autónomas, porque a respectiva norma de conflitos dispõe de um elemento de conexão que opera a designação do Direito aplicável. A conexão é dependente quando é necessário recorrer a outra norma de conflitos para determinar o Direito aplicável, porque a norma de conflitos não dispõe de um elemento de conexão autónomo. È o que se verifica, por exemplo, com o art. 36º, quando remete para a lei da substância do negócio, e, com o art. 40º, quando remete para a lei aplicável ao direito a que se refere a prescrição ou caducidade.

C) O elemento de conexão

1) Noção e função. Segundo a noção tradicional o elemento de conexão é um laço entre uma situação da vida e dado ordenamento de um Estado soberano que se entende ser o determinante para a escolha do ordenamento aplicável.
Em meu entender, o elemento de conexão pode consistir:
i) num laço fáctico entre um dos elementos da situação da vida e um determinado lugar no espaço que permita individualizar o Direito aí vigente; por exemplo, no art. 45º CC, o lugar onde decorre a actividade causadora do prejuízo;
ii) num vínculo ou qualidade jurídica que permita individualizar o Direito que o estabelece; por exemplo, a nacionalidade e o domicílio;
iii) um facto jurídico, tal como a designação pelas partes do Direito aplicável;

O elemento de conexão é diferente da conexão. O elemento de conexão individualiza o Direito a ser aplicado. A conexão é o chamamento de uma ou mais ordens jurídicas. O elemento de conexão estabelece a “ponte” entre a situação e a ordem jurídica aplicável.
O elemento de conexão é um elemento essencial da norma de conexão. A norma de conexão tem uma estrutura tripartida (previsão/estatuição/elemento de conexão) que a distingue das restantes normas que têm uma estrutura bipartida (previsão/estatuição).

2) Classificações do elemento de conexão. Segundo uma primeira classificação os elementos de conexão podem referir-se ás pessoas, isto é, aos sujeitos da relação, dizendo-se pessoais, ou ao seu objecto ou a factos materiais, dizendo-se reais.
Referem-se às pessoas a nacionalidade, o domicílio, a residência habitual e a sede de uma pessoa colectiva.
Referem-se ao objecto o lugar da situação da coisa e o lugar do destino das coisas em trânsito.
Referem-se a factos materiais, designadamente, o lugar onde é praticado o delito, o lugar da celebração de um acto e o lugar onde se desenrola um processo.
Uma segunda classificação atende ao modo como os elementos de conexão realizam a sua função de designação do Direito aplicável.
Esta função é realizada:
i) por via directa – quando o elemento de conexão aponta directamente o Direito aplicável, sem a mediação de um preciso ponto no espaço;
ii) por via indirecta – quando o elemento de conexão aponta para um determinado lugar no espaço, como via para, indirectamente, designar como aplicável o Direito vigente nesse lugar.

Uma terceira classificação atende á estrutura do elemento de conexão. Deste ponto de vista podem classificar-se os elementos de conexão conforme os conceitos designativos são descritivos (ou de facto) ou técnico – jurídicos (ou normativos).
São descritivos ou de facto, por exemplo, os elementos de conexão lugar da situação da coisa e lugar da prática do delito.
São técnico – jurídicos, por exemplo, os elementos de conexão nacionalidade e domicílio.
Uma quarta classificação atende à modificabilidade temporal do conteúdo concreto do elemento de conexão. Segundo este critério os elementos de conexão são móveis ou imóveis.
São móveis os elementos de conexão cujo conteúdo concreto é susceptível de variar no tempo, por exemplo, a nacionalidade, a residência habitual, o lugar da situação das coisas móveis.
São imóveis os elementos de conexão cujo conteúdo concreto é invariável no tempo, por exemplo, o lugar da situação das coisas imóveis, o lugar da celebração do negócio, o lugar onde decorre a actividade causadora do prejuízo.

● A determinação da conexão em função das circunstâncias do caso concreto.

A) Em geral

A determinação do Direito aplicável não resulta, então da concretização do elemento de conexão fixado numa norma de conflitos, mas de critérios flexíveis que deixam uma margem de apreciação ao intérprete.
Na estrutura destas proposições conflituais não encontraremos um conceito designativo do elemento de conexão. Este é substituído por um conceito altamente indeterminado, como o de “vinculação mais estreita” ou “Direito mais apropriado ao litígio”.
Algumas destas proposições jurídicas poderão ser consideradas cláusulas gerais, dado a sua previsão, muito ampla, carece de ser preenchida com recurso a critérios valorativos.
Outras normas de conflitos delimitam a sua previsão com recurso a categorias de situações jurídicas, tais como “obrigações contratuais” e “relações entre cônjuges”, mas utilizam conceitos indeterminados para designarem critérios gerais de conexão, tais como “a lei do país com o qual apresente uma conexão mais estreita” ou “ a lei com a qual a vida familiar se ache mais estreitamente conexa”.

B) O critério da conexão mais estreita

O critério da conexão mais estreita surge, no nosso Direito de Conflitos, no art. 4º da Convenção de Roma sobre a Lei Aplicável às Obrigações Contratuais, no art. 52º/2, 2ª parte CC, em matéria de relações entre cônjuges e no art. 60º/1 in fine CC em matéria de adopção.
Trata-se em primeira linha, de uma valoração conflitual, que atende aos laços existentes entre a situação em causa e a esfera social dos Estados.

C) A cláusula de excepção

A cláusula de excepção é uma proposição que permite afastar o Direito primariamente aplicável de um Estado, quando a situação apresenta uma ligação manifestamente mais estreita com outro Estado.
Enquanto nas normas de conflitos com conceito designativo indeterminado a justiça do caso concreto intervém na designação do Direito primariamente aplicável, nas cláusulas de excepção a equidade conflitual intervém para corrigir a designação do Direito primariamente aplicável, quando a situação apresenta uma ligação manifestamente mais estreita com outro Direito.
No Direito de Conflitos português não vigora uma cláusula geral de excepção.


Capítulo VI – Interpretação e Aplicação da Norma de Conflitos

● Interpretação da norma de conflitos

A) Generalidades

No Direito de Conflitos português vigoram normas de fonte interna e normas de fonte supraestadual.
Os critérios de interpretação aplicáveis são os que regem a interpretação de cada uma destas categorias de normas.
Relativamente ás normas de fonte interna deve ter-se em conta o disposto nos arts. 8º e 9º CC e a metodologia desenvolvida pela ciência jurídica.
Quanto às normas de fonte internacional há que atender às regras próprias que se estudam no DIPúblico e, designadamente, ao disposto no art. 31º da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados.
As normas de conflitos estrangeiras devem ser interpretadas segundo os critérios que lhes forem aplicáveis no sistema a que pertencem.

B) Normas de conflitos de fonte interna

As normas de conflitos de fonte interna têm de ser interpretadas como parte do sistema jurídico português.
Mas se a interpretação é ancorada no Direito material interno, ela não lhe está subordinada.
A interpretação da norma de conflitos é, por isso, uma interpretação autónoma relativamente ao Direito material interno.

C) Normas de conflitos de fonte supraestadual

De entre as normas de conflitos de fonte supraestadual avultam as normas de conflitos contidas em convenções internacionais de unificação do Direito de Conflitos. Segundo o sentido e o fim destas convenções a interpretação da norma de conflitos tem de ser autónoma relativamente às ordens jurídicas nacionais e assentar numa comparação de Direitos.
De modo algo diverso se colocam as coisas relativamente ao Direito Internacional de Conflitos, uma vez que se trata de normas de Conflitos aplicáveis por jurisdições internacionais ou quási – internacionais. Aqui a uniformidade de interpretação está garantida.

● A integração de lacunas no Direito de Conflitos

Numa primeira aproximação, podemos dizer que há uma lacuna da lei no Direito de Conflitos quando não encontramos uma norma de conflitos de fonte legal que indique a lei reguladora de determinada situação transnacional e que, segundo o sentido regulador do sistema, deve estar submetida àquele regime especial constituído pelo Direito de Conflitos.
Aparentemente, perante um sistema codificado as lacunas seriam raras. Sucede, porém, que a lacuna pode não ser patente, mas oculta. A lacuna oculta descobre-se mediante a interpretação dita restritiva ou a redução teleológica de uma norma de conflitos existente.
Afirma-se frequentemente que as lacunas de DIP são necessariamente patentes. Quer-se com isto significar que perante a falta de uma norma de conflitos aplicável a situação transnacional surge necessariamente uma lacuna, sendo de excluir que a situação deva ser regulada por uma aplicação directa do Direito material interno.
Na integração da lacuna devem ter-se em conta os critérios referidos no art. 10º CC e a metodologia desenvolvida pela ciência jurídica.
Em primeiro lugar, deve recorrer-se á norma aplicável a caso análogo (dita analogia legis).
Na falta de norma aplicável a um caso análogo, a solução do caso deve ser obtida mediante uma concretização dos princípios gerais e ideias orientadoras do DIP (dita analogia iuris).
Não sendo possível integrar a lacuna por um dos processos anteriores, caberá ao intérprete criar um critério de decisão “dentro do espírito do sistema “. Na formulação do critério de decisão o intérprete tem de respeitar os valores e os princípios de DIP, sem que, porém, a solução decorra da concretização destes valores e princípios. A solução tem de ser compatível com o sistema.
Acrescente-se que o intérprete tem de formular o critério de decisão sob a forma de uma proposição geral e abstracta, de uma regra de conflitos, que seja susceptível de ser seguida em casos semelhantes.
Importa ainda observar que as lacunas do Direito de Conflitos de fonte legal podem ser integradas pelo costume praeter legem e que, por conseguinte, só haverá lugar para o recurso aos processos de integração atrás referidos na falta de norma de conflitos de fonte consuetudinária que seja aplicável.

● A aplicação no tempo e no espaço do Direito de Conflitos

A) Preliminares. A norma de conflitos como norma de conduta.

À semelhança do que se verifica no domínio da física com o princípio da relatividade, também o Direito estadual é relativo no espaço – perante a coexistência de uma pluralidade de sistemas – e no tempo – dada a mutabilidade das ordens jurídicas.
Mas esta afirmação é geralmente pensada para as normas materiais de conduta. Poderá ela ser aplicada ao DIP?
Uma primeira questão que se suscita é a de saber se as normas de conflitos serão normas de conduta, isto é, se tem por missão orientar a actuação dos sujeitos jurídicos.
Enquanto norma agendi a norma de conflitos tem o âmbito de aplicabilidade limitado pela existência de uma conexão espacial e temporal.
Segundo o entendimento atrás adoptado as normas de conflitos são normas de regulação indirecta e que, por regra, têm por função orientar a conduta dos sujeitos jurídicos.
Designadamente não há razão para a priori considerar que as normas de conflitos portuguesas são, no tempo, de aplicação imediata e que, no espaço, reclamem uma esfera de aplicação universal.
B) Aplicação no tempo do Direito de Conflitos

1) Identificação do problema. O inicio e termo da vigência das normas de conflitos não suscita dificuldades especiais, resolvendo-se por aplicação das regras gerais, designadamente as da vacatio legis.
O problema que aqui interessa examinar é o da sucessão no tempo das normas de conflitos.
Por exemplo, qual é a lei reguladora do regime de bens do casamento celebrado em 1965 entre um português e uma britânica, então residentes habitualmente em Londres, sem convenção antenupcial? O casamento foi celebrado na vigência do Código de Seabra. A norma do art. 1107º do Código de Seabra considerava competente a lei nacional do marido, que é a lei portuguesa. O CC de 1966 regula a matéria no art. 53º remetendo, na falta de nacionalidade comum, para a lei da residência habitual comum à data da celebração do casamento, que é a lei inglesa. Qual a norma de conflitos aplicável? A do Código de Seabra ou a do novo Código?
Perante a sucessão no tempo de normas de conflitos torna-se necessário delimitar o âmbito de aplicação da norma de conflitos antiga e da norma de conflitos nova. Por outras palavras, trata-se de determinar se a situação transnacional a regular está submetida á norma de conflitos antiga ou à norma de conflitos nova ou de distinguir os aspectos da situação que continuam a ser regidos pela norma de conflitos antiga daqueles que passam a ser regulados pela norma de conflitos nova.
Quanto ás situações jurídicas que são em parte regidas pela lei antiga e em parte pela lei nova é também necessário coordenar as duas leis por forma a fornecer uma regulação coerente e a evitar que, sem justificação suficiente, se comprometa a continuidade das situações.
Não deve confundir-se a questão da aplicação no tempo das normas de conflitos com o problema da sucessão no tempo das normas materiais do Direito aplicável. Por exemplo, quando tendo os cônjuges a mesma nacionalidade, tenha havido uma alteração do regime de bens supletivo no Direito da sua nacionalidade.

2) Solução. O problema pode ser resolvido pelo legislador por meio de normas transitórias que disponham expressamente sobre a aplicação no tempo do Direito de Conflitos.
Na omissão do legislador deve recorrer-se ao Direito Intertemporal da ordem jurídica em que estão integradas as normas de conflitos em causa. È a tese defendida entre nós por Isabel de Magalhães Collaço.
As regras especiais de Direito Intertemporal sobre a sucessão no tempo de normas de conflitos, não existem no Direito de fonte interna.
Por conseguinte, são em princípio aplicáveis as regras gerais contidas nos arts. 12º e 13º CC.
O art. 12º consagra como é concebido a doutrina do facto passado. A valoração jurídica dos factos ocorridos na vigência da lei antiga não é, em princípio pela lei nova.
A aplicação às normas de conflitos de normas especiais de Direito transitório que se reportam apenas a normas materiais tem de se fundamentar em analogia.
Voltando ao exemplo da lei aplicável ao regime de bens, parece ser de aplicar analogicamente o disposto no art. 15º do DL 47344 sobre a não – retroactividade dos arts 1717º a 1752º CC, que disciplinam materialmente os regimes de bens, salvo quando forem considerados como interpretativos do Direito vigente. De onde resulta que a nova norma de conflitos sobre regimes de bens só se aplica aos casamentos celebrados depois de 31/5/67. Por conseguinte, a norma de conflitos aplicável é a do Código de Seabra, e a entrada em vigor do CC de 1966 não altera o regime de bens do casamento.

C) Aplicação no espaço do Direito de Conflitos

1) Identificação do problema. Os ditos conflitos de sistemas de DIP. Cada ordem jurídica estadual tem o seu próprio DIP. Os progressos realizados na unificação do Direito de Conflitos e do regime de reconhecimento de efeitos de decisões estrangeiras não eliminaram as divergências entre os sistemas nacionais de DIP.
Já sabemos que nos casos em que não há harmonia, entre os sistemas nacionais em presença, quanto à determinação do Direito aplicável a uma situação transnacional, se fala em “conflitos de sistemas de DIP”.
A divergência entre dois sistemas nacionais de DIP, designadamente a utilização de elementos de conexão diferentes, podem conduzir a dois resultados diversos:
- se os dois Direitos reclamam aplicação à mesma situação temos um dito conflito positivo;
- se nem um nem outro dos sistemas se considera competente temos um dito conflito negativo.

Por exemplo, suponha-se que a capacidade matrimonial é regida no Estado X pela lei da nacionalidade e no Estado Y pela lei da residência habitual; um casamento celebrado por dois nacionais do Estado X, no Estado Y da sua residência habitual, pode ser válido perante o sistema jurídico do Estado da residência habitual mas inválido perante o sistema jurídico do Estado da nacionalidade.
O DIP de um Estado permite tomar em consideração o Direito de Conflitos estrangeiro.
O instituto da devolução, nomeadamente, relaciona-se com o conflito negativo de sistemas.
O princípio da maior proximidade opera em casos de conflito positivo.
Pergunta-se agora se o Direito de Conflitos vigente numa ordem jurídica estadual regula todas as situações transnacionais que ocorram no mundo, quaisquer que sejam os seus laços com o Estado do foro, e mesmo que não haja qualquer conexão entre a situação e o Estado do foro, ou se existem certos limites à sua esfera de aplicação no espaço.
Na exposição que se segue refiro-me exclusivamente ao Direito de Conflitos que regula situações que só relevam na ordem jurídica estadual.

2) Concepções tradicionais. São duas as concepções tradicionais nesta matéria:
- alcance universal e territorialismo quanto aos órgãos de aplicação do DIP;
- limitação do Direito de Conflitos pelo princípio dos direitos adquiridos.

Para a tese do alcance universal do DIP toda e qualquer designação da lei competente para regular uma situação transnacional passa exclusivamente pelo Direito de Conflitos do foro.
Quanto à limitação do Direito de Conflitos pelo princípio dos direitos adquiridos, o problema dos conflitos de leis suscita-se quando no momento da constituição de uma situação é necessário escolher entre várias leis em contacto com os factos constitutivos.

3) Posição adoptada. As teorias dos direitos adquiridos não são a resposta mais adequada para esta preocupação.
Ao falarmos de aplicação no espaço do Direito de Conflitos poderemos ter em vista o DIP no seu conjunto ou apenas as normas de conflitos gerais.
É obvio que um sistema de DIP pode conter regras que limitem a aplicação no espaço de normas de conflitos gerais e (ou) que dêem relevância na ordem interna ao Direito de Conflitos estrangeiro.
Se uma norma especial de DIP limita a aplicação no espaço de uma norma de conflitos geral, não há limite à aplicação no espaço do sistema estadual de DIP.
A aplicação de DIP estrangeiro por força do DIP do foro tanto pode estar ligada à limitação da esfera espacial de aplicação de uma norma de conflitos como ser independente desta limitação.
A seguir este raciocínio, e de acordo com o então exposto, o sistema de DIP de um Estado não será aplicável:
i) a situações que sejam abrangidas pela imunidade de jurisdição de um Estado estrangeiro;
ii) a situações “relativamente internacionais”, isto é puramente internas a outro Estado;
iii) a outras situações transnacionais quando não se verifique um dos títulos de competência legislativa anteriormente referidos.

Assim, em princípio, o DIP de um Estado não será primariamente aplicável a uma situação transnacional, que não apresente um laço pessoal ou territorial com o Estado do foro nem produza aí efeitos. Mas já será aplicável caso se trate de uma matéria em que se admite o pacto de jurisdição e as partes tiverem atribuído competência aos tribunais deste Estado.
O DIPúblico já não exclui que o DIP de um Estado regule uma situação que após se ter constituído como situação interna de um Estado estrangeiro venha a entrar em contacto, pelos seus elementos ou efeitos, com o Estado local.
Resta examinar até que ponto as normas de DIP do foro estabelecem limites internos, isto é, limites à aplicação no espaço das normas de conflitos gerais.
No sistema português, não há limites genéricos á aplicação no espaço das normas de conflitos gerais.
Vigoram na ordem jurídica portuguesa certas normas de conflitos que de um ou outro modo limitam o campo de aplicação no espaço de outras normas de conflitos. É o que se verifica com as seguintes normas de conflitos:
i) o art. 31º/2 CC, quando limita a competência da lei da nacionalidade para salvar a validade de negócios que tenham sido celebrados no país da residência habitual segundo o Direito deste país que se considere competente (é um limite à norma que resulta da conjugação do art. 25º com o art. 31º/1);
ii) O art. 47º CC, quando consagra um desvio à lei pessoal em matéria de capacidade para constituir direitos reais sobre imóveis ou para dispor deles quando a lex rei sitae se considere competente (é um limite à norma que resulta da conjugação do art. 25º com os arts. 31º/1 e 32º em que, como se assinalou, se manifesta o princípio da maior proximidade);
iii) O art. 37º da Lei da Arbitragem Voluntária, quando limita o DIP especial da arbitragem internacional às arbitragens que tenham lugar em território nacional.

Observe-se que as duas normas primeiramente referidas são normas de remissão condicionada que dão relevância ao Direito de Conflitos de estrangeiro.

4) Normas que permitem tomar em consideração o DIP estrangeiro. Além das normas de remissão condicionada atrás referidas (arts. 31º/2 e 47º CC), há outras normas que permitem tomar em conta a posição do DIP estrangeiro, sem contudo limitarem a aplicação no espaço de normas de conflitos. É o que se verifica:
- em matéria de devolução;
- na resolução de questões prévias, quando excepcionalmente seja de estabelecer uma conexão subordinada, nos termos que adiante se esclarecerão.
- com outras normas de remissão condicionada.